Angop | Margarida Cortez
A violência doméstica continua a enlutar famílias em Angola, com dezenas de casos diários de espancamentos brutais, assassinatos hediondos e suicídios desesperados, cometidos depois de a vítima clamar por socorro sem receber resposta. A situação exige atenção especial da sociedade.
Os números apontados pelo Governo e as estatísticas apresentadas pelas autoridades policiais já sustentam a tese da gravidade do problema. É mais que evidente que, há muito, este fenómeno social deixou de ser exclusivo às famílias. A situação exige uma resposta rápida do Estado.
O relatório final do Inquérito de Indicadores Múltiplos e de Saúde 2015/2016, lançado pelo Instituto Nacional de Estatística, indica que uma em cada cinco mulheres angolanas (21,7 por cento) diz ter sido vítima de violência física “frequentemente ou às vezes”.
Lamentavelmente, muitas destas mulheres acabam por achar “normal” a violência que sofrem, por uma questão cultural ou por dependência económica.
Só na capital angolana, Luanda, 30 por cento das mulheres já terá sido vítima de violência física, de acordo com o mesmo relatório. Mas, na prática, esse número é bem maior.
Numa altura em que o país reforça as medidas jurídico-legais para frear o problema, fundamentalmente a aprovação da Lei Contra a Violência Doméstica, é chocante ver que quase um terço (31,7 por cento) da população feminina, com idade entre os 15 e os 49 anos, afirma ter sido vítima de violência doméstica nalgum momento da vida.
O estudo indica que, a partir dos 20 anos, a percentagem de mulheres que sofreu violência física estabiliza, variando entre os 32,9 e os 35,6 por cento, enquanto as jovens entre os 15 e os 19 anos, que já foram vítimas do mesmo tipo de violência, estão nos 22,2 por cento.
Entretanto, o mesmo relatório aponta outra realidade: violência física cometida por mulheres contra os parceiros.
Seis por cento dos homens afirma já ter sido vítima, em algum momento, das suas parceiras, tendo este número alcançado os cinco por cento em 2018.
Apesar dos elevados casos de violência física, segundo os Serviços de Investigação Criminal (SIC), o tipo de violência mais denunciado é o abandono familiar, seguido da violência psicológica, sendo as mulheres a comparecerem em maior número, com 82,75 por cento.
Em 2017, o SIC deteve, em Luanda, mil e 335 agressores, em virtude dos mil e 591 casos de violência doméstica registados.
Um ano antes (2016), registou mil e 406 casos de violência doméstica, dos quais mil e 74 resultaram em detenções, enquanto, em 2015, foram registados, só na capital angolana, 5.210 queixas, com 2.290 detenções efectuadas.
Das 5.210 queixas apresentadas ao SIC de Luanda, 4.069 foram de violência contra a mulher, tendo resultado na detenção de mil e 470 agressores.
Apesar de os números revelarem uma aparente diminuição das queixas e indiciarem resultados positivos no combate à violência doméstica, a realidade é outra.
Só nos Centros de Aconselhamento do Ministério da Acção Social, Família e Promoção da Mulher (Masfamu), foram registados 6.097 casos de violência doméstica, em 2017, mais 390 em relação a 2016, em que se contabilizaram 5.707 casos.
Na prática, os casos não são proporcionais às detenções, na medida em que muitos dos infractores permanecem impunes umas vezes, porque as parceiras retiram as queixas, outros porque os agentes de autoridade aconselham a reconciliação extrajudicial.
Nos últimos seis meses, Angola registou acentuado aumento de assassinatos hediondos, alguns por motivos passionais, crença em feitiçaria e por ingestão de substâncias psicotrópicas (cigarros, álcool e estupefacientes), tais como:
A advogada assassinada no Zango pelo marido e colocada numa fossa; a médica torturada, queimada e morta pelo companheiro na Lunda Norte; a mulher morta a paulada pelo esposo, em Malanje; o agente da Polícia Nacional que disparou contra a noiva, em Viana, causando-lhe ferimentos graves na cabeça e no pescoço.
Um cidadão de 33 anos morto a paulada pelo irmão, na Humpata; filha mata a mãe a pedrada, no Huambo; marido mata a esposa a paulada, na Huíla e Malanje; militar das FAA mata companheira a tiro e suicida-se, em Malanje; briga entre amigos resulta em morte a facada.
Além dos casos de três mulheres mortas pelos companheiros, por espancamento, em Luanda; jovem espanca o pai até a morte, na Huíla; cidadão mata o filho por espancamento; outro cidadão morto a paulada pelo irmão, na Huíla; bem como a mulher de 40 e a filha de três mortas pelo marido e pai, no Namibe.
Estes casos são apenas uma pequena amostra do problema; são os crimes que chegam às redes sociais todos os dias e que provam que o que aprendemos de cedo, “que o lar é o local mais seguro do mundo”, nem sempre é verdade, pois as vítimas dos casos acima referidos são prova disso.
É aterrador quando o “algoz” se encontra muito próximo da vítima.
Entende-se que existe um “pacto de silêncio” que deve ser rompido, com a sensibilização das famílias para a mudança de atitude e de comportamento, mostrar às vítimas que existem instituições para a denúncia e aos agressores que a Lei é eficaz e deve ser cumprida.
O problema da violência doméstica é que não se reduz às lesões físicas decorrentes dos maus tratos, uma vez que os efeitos psicológicos são, muitas vezes, para toda a vida, afectando e destruindo famílias.
Estudos apontam que a violência doméstica tende a ter efeito dominó, quando atinge um membro de uma família, visto que acaba por afectar a todos, quer na rentabilidade laboral, no rendimento escolar, ou as pessoas que convivem com os afectados, como vizinhos e amigos.
Para reduzir o impacto e coibir o uso da violência, Angola, além da legislação nacional, assinou importantes instrumentos internacionais, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação sobre a Mulher (CEDAW).
Aprovou, em 2011, a Lei Contra a Violência Doméstica (Lei 25/11), que traz um instrumento novo que permite, inclusive, que uma terceira pessoa, alheia ao drama, faça a denúncia.
Esse passo é extremamente importante, porquanto, em muitos casos, as vítimas, por medo, pressão familiar ou dependência económica, não apresentam queixa às autoridades competentes.
Dada a realidade e o avolumar de casos que todos os dias “invadem” as rádios e as televisões, não restam dúvidas de que o Governo deve começar por estudar a possibilidade de aplicar penas mais pesadas, para desencorajar os infractores.