Envelhecer é como escalar uma grande montanha: ao escalar, as forças diminuem, mas o olhar é mais livre, a visão mais ampla e mais serena. Esta frase é de Ingmar Bergman, o célebre escritor e cineasta sueco, falecido em 2007.
Coincidentemente reflecte o que eu sinto hoje. A minha capacidade física diminui à medida que a idade cresce, mas vejo com olhos mais claros a imagem da heróica paisagem que me rodeia.
É curioso que faça uma abordagem a Bergman e à sua obra nesta crónica, precisamente a última da série que tem o seu epílogo hoje. Talvez o facto de o laureado realizador se ter mostrado, ao longo da carreira, um autor difícil de entender.
Talvez porque, longe de qualquer sofisma, acredite que os cenários mwangolé que deixo na superfície do relato que venho fazendo há mês e meio, despindo à minha maneira uma sociedade também ela difícil de ser entendida, poderiam, de algum modo, seduzi-lo para a realização de um grande filme.
Leviandade? Presunção? Pouco me incomoda. Importa sim que, apesar da quebra física que não escondo, eu tenha o olhar sempre atento ao que me rodeia, E nesse aspecto, posso dizer que observo, nos mais diversos momentos e circunstâncias, cenas de um surrealismo tal que só a mestria de génios como Bergman conseguiriam transpor com sucesso para o cinema e levar o público a reflectir.
No momento em que me meto a caminho para a última etapa do percurso que entendi designar por “caminhos da liberdade” – ai, como é bela a independência da expressão –, veio-me à ideia a revisitação da vasta e genial filmografia de Bergman, da qual destaco a obra que mais me impressionou: “A Fonte da Virgem”, uma película que apreciei nos primeiros anos da década de sessenta. Lembro-me hoje deste maravilhoso filme, e ainda sinto a comoçãodo enredo, um drama que acabou por proporcionar ao realizador o seu primeiro Óscar.
Centrada em temática religiosa e num crime brutal contra uma jovem adolescente, praticado por dois pastores bárbaros, naturalmente incultos e insensíveis quanto ao valor da vida da pessoa humana, a trama mostrou até onde pode ir a inconsciência e a maldade das pessoas.
A força que o berço tem ou a que prevalece da sua ausência, permitiu que se consumasse o hediondo acto, sob o olhar impávido, cúmplice e inclemente da empregada que cuidava da menina mas que, movida pela inveja e pelo ciúme, nutria um ódio estúpido e incontrolado contra a jovem.
Violada e estuprada sem piedade, a virgem foi despojada de tudo que levava, roupas e jóias que os assassinos logo tentaram vender. Ódio, fanatismo, irresponsabilidade, vingança, tentativa de perdão e, infalivelmente, o não entendimento de como Deus havia permitido a morte, naquelas circunstâncias, de uma inocente criança.
Uma sucessão de sentimentos e carências, sabiamente exploradas na invulgar obra de Ingmar Bergman que,por estranho que possam parecer, são mais ou menos idênticos, infelizmente, aos que perturbaram o recente passado e incomodam seriamente o presente dos angolanos.
Enquanto caminho, passo da curiosidade efémera para um pequeno tesouro que preservo. A minha memória. Essa mesma que, por meio de firmes lembranças, me alerta que para lá da indissociável relação da luz e da obscuridade naquela configuração da Suécia medieval, que o filme mostrou, existem outros elementos da vida que são universais e comuns a todos os povos.
Não podendo ajustar-se, em termos comparativos, à realidade do país nórdico, a da nossa Angola, quer a de hoje como a de antanho, mostra uma diferença notável entre eles, causas do berço, da escola, da educação e da cultura. Elementos fundamentais, que constituem, naturalmente, a força motriz do desenvolvimento das sociedades.
Os suecos superaram as trevas, desenvolveram-se incrivelmente, enquanto nós, os angolanos, nos mantivemos num estádio de crescimento precário. Não há como fugir a essa realidade, nem tento sequer refugiar-me nos cenários da longa noite colonial.
Porque a caminhada que termino hoje e na qual questiono o país, diz respeito a uma Angola liberta do colono, jovem, soberana e independente, capaz de fazer o homem bom e, consequentemente, uma sociedade melhor.
Em vez de optarmos pela educação e cultura da população, pusemo-nos a comprar sonhos impossíveis aos nossos sonos intranquilos. No sentido literal e metafórico da proposição. Neste combate incontestavelmente falhado, apesar de alguma gente preparada que sempre teve na frente, houve muito mais preocupação em se elegerem os inimigos a abater e, desta maneira, a luta, inevitavelmente, tem continuado. Sem resultados práticos.
Sinto-me cansado mas reconfortado. Satisfeito com o andamento que me permitiu lembrar o nosso tortuoso percurso e que me leva, enfim, a dizer em tom de desabafo, o que alguém já disse um dia, “envelhecer é o único meio que temos de viver mais tempo”.
E assim me despeço. Voltarei para a semana, com nova conversa e outras lembranças. Até domingo, à hora do matabicho.