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Segunda-feira, Novembro 25, 2024

Toque a rebate

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O sinal de alarme soou por estes dias mais violento que nunca. O toque tem características do grito com que se acusa a aproximação do inimigo. Como em ocasiões anteriores, veio novamente das alturas, do firmamento, como um sério aviso para os que teimam em não fazer as coisas como deveriam ser feitas.

A trovoada, os relâmpagos e as precipitações acabam por ser um recado fácil de decifrar. Em 1963, no tempo dos colonos, a primeira chuvada de que me lembro, uma furiosa correnteza nunca vista até aí, encharcou Luanda e embaraçou a vida dos citadinos, obrigando os tugas a pensar rapidamente em soluções para o futuro.

Soluções que não foram inspiradas nos cerca de dez milhões de almas que hoje habitam a cidade capital. A tragédia, segundo mestres da kimbanda e do feitiço, era a vingança dos mártires, simbolizada nas lágrimas das vítimas do sangrento ano de 1961.

A chuva voltará todos os anos, no tempo certo ou fora dele, e se a sua queda for normal será aben- çoada pelos agricultores, os que vivem da terra e do que ela produz, pelos animais e pela população em geral.

Mas se cair com esta força dos últimos dias, continuará a fazer sofrer em várias partes do país, os infelizes de sempre, os deserdados da terra, os sem nada, os que não se importam de viver molhados.

E, como as coisas andam, sem nenhum serviço integrado de protecção civil digno desse nome em toda a Angola, fará também que continuemos a permitir, impávidos e serenos, que o silêncio de quem deve, por obrigação, retratar-se, assumir erros, falar para confortar, para ajudar, se mantenha e, quando quebrado, venha tardio e descontextualizado.

Isto assim não pode ser, cantavam os Kiezos a “cascar” nos colonos, dizendo-lhes vão, vão-se embora, lembram-se? Mas agora a música é outra, vibra e soa a desgraça construída por nós próprios, pela nossa incúria e incapacidade. Assim, por maioria de razão, a letra da música precisa de ser endereçada com a mesma intenção a quem manda nisto tudo.

Não nos podemos esquecer que em 2015, no Lobito, em consequência de fortes chuvadas, morreram cerca de 80 pessoas, metade eram crianças. Impávido e sereno, o Presidente de então, no alto da sua autoridade e convencimento de que sabia bem o que fazia, não falou à população que o elegeu, como seria sua obrigação.

Isto assim não pode ser, a frase passou rápido pela mente de muita gente e apeteceu soltá- la, naquela altura em que ninguém falava. Que me lembre, a nível do Estado não houve falatório nem solidariedade à altura das circunstâncias. Fizeram o habitual, ou seja, distribuíram chapas de zinco, alguns bens para amenizar o sofrimento, a mesmice de sempre.

Prometeram um memorial que até hoje não foi erigido. Para falar a verdade os memoriais que recordam muita gente morta, deprimem-me. Lá terão a sua serventia, mas acabam por não dizer nada.

Com a desgraça que se abate sobre a capital do país, pensei que fosse anunciado um discurso dirigido à população por parte do Presidente da República, para acalmar os espíritos do povo, evitando entre outros males que novos kimbandeiros viessem a terreiro gritar que a chuvarada era o castigo vindo do reino de Kalunga Ngombe, dos nossos ancestrais, desta feita escrutinando a governação dos terrestres, inventariada com pareceres negativos no país inteiro.

Sobre o inseguro saneamento, as obras de má qualidade, as estradas e pontes mal construídas e sobrefacturadas, a fiscalização precária, agora mostrada em toda a sua nudez.

Distante das crenças está o poder da Natureza que não pode ser comparado ao do soba feiticeiro que em ridículo estilo carnavalesco se exibiu na Marginal de Luanda para afugentar a chuva que amedronta os governantes.

Esperei ansioso que o Presidente João Lourenço falasse à Nação e assumisse as responsabilidades do seu Governo, que fizesse mais umas exonerações e outras quantas nomeações que valessem a pena, para não seguir a linha do seu antecessor.

A política da boca calada não ajuda nas lutas de poder. Fiquei aliviado, não por ouvir o Presidente como gostaria, mas pela mensagem a endereçar condolências e a consolar os familiares das vítimas das chuvadas torrenciais.

Seria muito mais apreciada a sua presença pessoal, do Vice-Presidente ou da ministra de Estado, porém entendo que se sobreponham outros compromissos, outras prioridades. Contudo, não impediriam, como se impunha, o decreto de luto na cidade. A palavra da governadora chegou com atraso.

Até acho bem que seja poupada deste sacrifício a doutora Joana Lina que, apesar da sua famosa arrogância, não demonstra ter a força necessária para o desempenho do cargo, nem sequer a capacidade de granjear simpatias entre os munícipes. Há anos que sabemos que governar Luanda nos moldes inventados pelo MPLA, é uma autêntica aventura.

Desculpem-me se exagero, mas sinto que o modelo original da governança adoptada, e não apenas para Luanda, se vem mostrando de uma inutilidade flagrante. No caso particular da capital, qualquer um dos muitos altos responsáveis que passaram por essa casa chamada GPL, sentiu dificuldades.

A meio da empreitada, acharamse perdidos numa selva tenebrosa, sem atinarem com o rumo certo para a caminhada. Ah, quão difícil deve ser penetrar nessa selva agreste e espessa, cuja simples lembrança faz o medo ressurgir em qualquer cidadão, uma sensação pouco menos amarga, quiçá do que a da morte!

Refiro-me à morte política dos bravos que aceitam a empreitada e dos que andam à espera de a aceitar ou a ela retornar. Por isso e por outras, muita gente se livra da obediência partidária, do compromisso de dizer bem de tudo o que está mal. Não estando interessado em desenterrar polémicas defuntas, posso afiançar o que toda a gente sabe.

Existe no país um vastíssimo naipe de cidadãos com qualidades técnicas e morais para salvar Luanda e o país, desde que o toque a rebate chegue até eles sem desvios e falsos argumentos, e se coloquem de parte sentimentos remotos que envolvem as cores partidárias dos cidadãos.

Esperando que a ira da Natureza se acalme, para bem e protecção da população vulnerável, despeço-me dos meus leitores. Até para a semana, no domingo, à hora do matabicho.

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