Este caso traz à memória o que a História nunca vai conseguir esquecer. Não são sobre um episódio de escravatura do século XVIII ou XIX. Aconteceu em 2019. No mês passado. No Brasil.
De acordo com o JN, um jovem de 17 anos, de raça negra, foi despido, amarrado, amordaçado e chicoteado com fios elétricos por dois seguranças de um supermercado da rede Ricoy, num bairro da zona sul de São Paulo. Tinha tentado sair com um chocolate sem pagar.
As agressões foram filmadas, presumivelmente pelos seguranças, e acabaram por vir a público. O caso provocou uma onda de indignação no país e motivou a abertura de um inquérito policial, que está a investigar um possível crime de tortura. Este ocorre quando alguém é submetido, com emprego de violência ou ameaça grave, a intenso sofrimento físico ou mental. Segundo a lei brasileira, os responsáveis podem ser punidos com dois a oito anos de prisão.
O vídeo em causa, publicado por vários jornais brasileiros, revela a extrema violência a que o jovem foi submetido e é desaconselhável a pessoas mais suscetíveis de serem impressionadas.
O chefe de polícia responsável pelo caso, Pedro Luis de Souza, descreveu-o como “um crime covarde, extremamente violento, inominável”. “É uma barbaridade, uma violência incomensurável”, disse ao jornal “Folha de São Paulo”, que teve acesso a imagens dos hematomas e ferimentos infligidos ao jovem. Ao britânico “The Guardian”, o responsável admitiu ser “uma cena de há séculos”, aludindo a uma altura da História em que existia escravatura no Brasil, abolida há mais de 130 anos.
No boletim policial que relata a ocorrência, transcrito pelo “Estadão”, o adolescente conta que, ao sair do estabelecimento, foi abordado por um segurança que, apercebendo-se da tentativa de furto, o levou, com a colaboração de um colega, para uma zona isolada do supermercado. Terá sido agredido durante os cerca de 40 minutos em que lá esteve e, por temer pela vida, não denunciou os agressores, que o teriam ameaçado de morte.
Jovem vive na rua desde os 12
A vítima, que vive nas ruas desde os 12 anos, já tinha estado num centro de detenção para menores de idade do Estado de São Paulo, por ter invadido uma casa, e, segundo a Polícia, já conhecia os dois seguranças. Em entrevista à TV Globo, garantiu que esta não foi a primeira vez que sofreu agressões. “Quero justiça contra isso, eles fizeram maldade. Quero pô-los dentro das grades”, disse.
Os agressores, identificados como Santos e Neto, de 37 e 49 anos, foram contratados por uma empresa externa ao supermercado, que garantiu à Polícia ter afastado os funcionários. A rede Ricoy esclareceu entretanto que “repugna esta atitude [dos indivíduos] e foi com indignação que tomou conhecimento dos factos”. “A empresa não compactua com nenhum tipo de ilegalidade e colaborará com as autoridades competentes envolvidas no apuramento do caso, a fim de tomar as providências adequadas”, comunicou.
Caso motivou críticas
As críticas ao triste episódio trazem à tona um assunto há muito discutido no Brasil: a persistência de um pensamento racista e esclavagista.
No Twitter, foram várias as reações. Luciana Genro, ex-candidata a presidente da República pelo partido de esquerda PSOL, descreveu que a cena “repete o Brasil colónia”, questionando até onde a sociedade irá “regredir”.
Marcelo Freixo, também do PSOL e candidato a governador do Estado do Rio de Janeiro, sublinhou que “tortura é crime” e apelou à punição dos agressores.
“Cenas que lembram séculos passados em pleno 2019”, escreveu o rapper brasileiro Rincon Sapiência na rede social.