Carlos Alberto Ferreira Pinto, Provedor de Justiça, enviou na passada quinta-feira a sua carta de renúncia ao presidente da Assembleia Nacional, Fernando da Piedade dos Santos “Nandó”.
O provedor de justiça “é uma entidade pública independente que tem por objecto a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, assegurando, através de meios informais, a justiça e a legalidade da actividade da Administração Pública” (artigo 192.º da Constituição).
Quer isto dizer que é uma espécie de defensor do povo na administração pública, procurando corrigir os erros detectados ou denunciados ocorridos na actividade da administração pública, embora não dispondo de força legal coerciva para o fazer, apenas usando de persuasão e lógica.
Este é um tempo de demissões e renúncias. Quem está incomodado nos seus lugares deve sair e dar a vez a outros. Quem está e se limita a murmurar baixinho, deve imitar o provedor e sair. Nessa medida, a renúncia do provedor é de aplaudir: sai com dignidade, não fica a ocupar um cargo pelo cargo, e dá lugar a outros que, espera-se, queiram desempenhar a função com interesse e empenho. Clarificar e dividir as águas é positivo.
Na verdade, de algum modo, a renúncia do provedor já vem tarde, uma vez que o momento ideal para sair teria sido quando a Provedoria foi defenestrada da sua sede para dar lugar ao Tribunal Supremo em Março de 2020 – portanto, há cerca de um ano.
Nessa altura, por razões pouco fundamentadas, foi ordenado que o provedor saísse da casa que tinha sido construída de raiz para este órgão e a entregasse ao Tribunal Supremo. Foi-lhe dado um mês para abandonar as suas instalações, junto ao Ministério da Defesa, na Cidade Alta, entregar o seu edifício ao Tribunal Supremo e mudar-se para o Palácio da Justiça.
Actualmente, presume-se que a renúncia de provedor, entre outros motivos, se deva à revisão constitucional. Talvez com alguma justificação doutrinal, mas sem bom senso prático, os redactores da presente proposta de revisão constitucional entenderam retirar as referências ao provedor da justiça da secção intitulada “Instituições Essenciais à Justiça” e integrá-lo sob o título da “Administração Pública”.
Também resolveram deixar de considerar a Provedoria uma “entidade pública”, querendo torná-la uma “entidade administrativa independente”. Escreve-se na fundamentação da Proposta de Lei de Revisão Constitucional: “e o Provedor de Justiça não é, primacialmente, um órgão auxiliador do Poder Judicial e muito menos um órgão jurisdicional.
Na verdade, a própria Constituição atribui ao Provedor de Justiça o estatuto jurídico de uma ‘entidade pública administrativa’), numa intencionalidade que, certamente, a procura enquadrar numa das espécies da figura de ‘entidades administrativas independentes’ prevista no número 3 do actual artigo 199.º.”
Em rigor, há aqui um erro, dado que Constituição não se refere ao provedor como uma “entidade pública administrativa”, mas como uma “entidade pública”, conferindo-lhe uma dignidade diferente e extra-administrativa. Vislumbra-se aqui alguma precipitação nos técnicos que elaboraram a proposta de revisão constitucional.
É evidente que o provedor vive do seu simbolismo e da sua autoridade, uma vez que não tem poderes coactivos legais. Assim, esta modificação constitucional corresponde a uma despromoção do provedor. Um órgão essencial à Justiça passa a ser uma entidade administrativa.
Os proponentes da revisão constitucional podem alegar tecnicamente que não estão a diminuir os poderes do provedor – pois ele não os tem – mas não podem ignorar que um órgão que vive da imagem não beneficia ao deixar de ser considerado constitucionalmente um órgão de justiça e tornar-se em mais uma parte da administração.
Não colocando um problema de direito, esta modificação constitucional insinua uma questão de dignidade. E dignidade é o que é retirado na revisão ao provedor. Consequentemente, depois de ficar sem a sede física, o provedor fica sem a sede constitucional. Será demais para um órgão que vive da influência informal.
A mensagem que lhe estão a transmitir é que ele não tem influência nenhuma. Assim, justifica-se que o provedor renuncie, como também se justifica que qualquer titular de órgão que não esteja satisfeito com o seu desempenho renuncie.