A actividade de engraxador de sapatos, anteriormente assumida por adultos, hoje é dominada por crianças, na cidade do Lubango, província da Huíla, onde mais de 300 praticam esse ofício, na sua maiorria residentes no bairro Lalula.
Normalmente são menores dos oito aos 16 anos de idade, que das sete às oito montam postos em esquinas da cidade e lançam-se à actividade ambulante de limpar sapatos, convidando, às vezes até de forma inoportuna, os possíveis clientes.
Com um rendimento médio diário de mil e 500 kwanzas, o ofício tem sido refúgio para muitas crianças carentes que trabalham, segundo eles, para ajudar a colocar comida em casa e comprar material escolar.
Em Angola, o trabalho infantil constitui crime, mas muitos progenitores mandam os seus filhos para exercer a actividade devido, em parte, às dificuldades que enfrentam. Muitos deles afirmaram à ANGOP que engraxam num só período, sendo outro dedicado aos estudos.
Actualmente, é visível um elevado número de engraxadores no jardim da Sé Catedral, em frente ao mercado municipal, na marginal do rio Mukufi, na rua 4 de Abril, entre outros pontos da cidade, que cobram 50 a 100 kz para limpar um par de sapatos.
Avozinho, de 15 anos de idade, disse que estuda a sexta classe, vive com a mãe no bairro Lalula e engraxa há mais de dois anos, por meio período, por causa da escola, e o rendimento que obtém serve para ajudar nas despesas de casa e material didáctico.
Disse ser um ofício pouco rentável, uma vez que diariamente consegue angariar apenas mil e 500 a dois mil kwanzas e, para além de se deparar com escassez de clientes, tem também dificuldades na aquisição dos materiais por serem dispendiosos, optando por outro tipo de graxa, com recurso à combustão de motores diesel.
Já o adolescente António Augusto, de 14 anos de idade, também da Lalula, aprendeu a engraxar com o seu irmão mais velho e exerce, igualmente, a actividade para comprar comida e material escolar, graças a uma renda diária não superior a dois mil kz.
Emanuel Artur, outro engraxador de 12 anos de idade, realçou que vive com a irmã mais velha, no bairro da Lalula e não está a estudar, por não ter conseguido fazer a matrícula para o presente ano lectivo.
Disse que o dinheiro do seu trabalho, que desenvolve em local não apropriado, usa-o para os seus gastos pessoais, desde a compra de roupa, sapatos, entre outros bens e serviços.
Afirmou que, para além do controlo dos fiscais da administração do Lubango e agentes da Polícia Nacional, muitas vezes são vítimas de agressões de outros colegas de profissão mais velhos, que “os roubam o material de trabalho”.
Um outro menor de seis anos de idade, Luís Ndungui, órfão de pai e vive com a mãe doméstica, diz ter abraçado o ofício há três meses, por necessidade, inspirado pelas outras crianças e adolescentes que exercem esta actividade.
Contou que o material com o qual trabalha foi oferecido por alguns clientes e tem um provento médio diário de 800 kwanzas, que serve para a alimentação de casa. Não estuda por falta de documento de identificação.
Adultos na profissão falam em “dividir trabalho com os miúdos”
Há 32 anos a exercer a profissão de engraxador, Liege, de 61 anos de idade, mais conhecido por Elias, explicou que, sem alternativas, optou pela profissão, depois de desmobilizado das forças armadas, mas gosta do trabalho que faz.
Proveniente da Humpata, tem um posto fixo defronte a Conservatória do Lubango, onde trabalha de segunda a sexta-feira, das seis às18 horas, dependendo do número de clientes/dia e só volta para o seu município aos fins-de-semana.
“Quando comecei fazíamos muito dinheiro, mas agora com os miúdos a fazerem esse trabalho, as coisas mudaram. Somos muitos nessa prática e as crianças tiram o trabalho dos mais velhos, não querem ir à escola. Então, o que temos que fazer é remediar, dividir o trabalho com os miúdos”, manifestou.
Apesar disso, acrescentou, muitas pessoas procuram os seus serviços no seu “ponto”, entre de directores e professores de escolas, clientes que considera fiéis.
Um outro adulto nessa profissão é Molossangui, de 30 anos de idade, morador do bairro Tchavola e trabalha há três anos como engraxador no largo da Sé Catedral, num dos pontos determinados pela Administração Municipal do Lubango.
“Trabalharmos nessa cabine imposta pelo Estado; pagamos imposto de sete mil kz/mês pelo espaço e por dia conseguimos arrecadar menos de cinco mil. Os fiscais já não os incomodam, pois possuímos um cartão que nos identifica”, salientou.
Referiu que alguns dos meninos a trabalhar como engraxadores de rua, não tem o que comer, outros são abandonados pelos familiares e, em alguns casos, “os pais não conseguem sustentá-los e acabam por aderir a prática e outros até chegam a roubar”.
INAC controla mais de 300 crianças engraxadoras
Em declarações à ANGOP, a directora do Instituto Nacional da Criança (INAC), na Huíla, Inês Pimentel, disse que o ofício praticado por menores preocupa muito o sistema de protecção às crianças, daí terem feito um levantamento de mais de 300 crianças nessa condição, em 2021.
Como resultado do registo, verificou-se que mais de metade não estava no sistema de ensino e tinham também as famílias em situação de vulnerabilidade.
Em função disso, a fonte avançou que, com a abertura de dois centros de acolhimento, conseguiram tirar muitas crianças engraxadoras das ruas e hoje aprendem vários ofícios, entre outras actividades.
“As crianças que voltam para casa acabam por retornar ao centro ou às ruas, por não encontrarem sustentabilidade. As famílias continuam vulneráveis e os menores vão outra vez para rua para praticar a mesma actividade.
Defendeu a necessidade de se fazer um trabalho mais profundo com as famílias e sensibilizar para persuadir os petizes, menores de 14 anos, a abster-se de exercer a actividade de engraxador.
Continuou que com mais de 14 anos, o adolescente já pode trabalhar legalmente, desde que não prejudique o seu desenvolvimento e o rendimento escolar.
“O lugar da criança não é no centro de acolhimento, mas sim na família. Fica no acolhimento enquanto se trabalha com os familiares e no comportamento do menor, para seu posteriormente enquadramento no seio familiar”, disse.
Administração do Lubango faz levantamento exaustivo da situação
A administradora-adjunta para a área Social e das Comunidades do Lubango, Helga Chaves, admitiu que existe ainda um “bom número” de crianças engraxadoras nas artérias da cidade a serem exploradas pelos adultos.
Explicou que um adulto engraxador não cobra o mesmo preço que a criança, então há uma concorrência desleal. O material é diferente e todo mundo quer um trabalho bem feito, a um custo reduzido, daí recorrerem às crianças que cobram 25 ou 50 kwanzas.
Salientou que muitas crianças alegam que praticam esse ofício para ajudar em casa e comprar cadernos, devido ao desemprego dos pais, acrescentando que a administração está a fazer o cadastramento das mesmas, para posteriormente aferir-se, com os pais, o que realmente se passa e encontrar-se outras soluções.
Informou estar em curso, há dois meses, um trabalho de levantamento “profundo”, em parceria com o gabinete provincial da Acção Social, Família e Igualdade de Género da Huíla, para a inserção dessas famílias em actividades produtivas.
Disse que o objectivo é tentar retirar todas as crianças dessa actividade, pois o lugar delas é em casa e nas escolas, apelando a todos os munícipes a não recorrer ao trabalho dos menores.
A profissão de engraxador data desde 1806, quando um operário poliu as botas de um general francês como forma de exprimir o seu respeito por ele.
ANGOP