A guerra na Ucrânia tem um impacto que vai para lá do continente europeu. A Euronews foi a Angola falar com o Presidente João Lourenço sobre a visão de um país africano que é um importante produtor de petróleo e um potencial fornecedor de gás natural à Europa.
Nara Madeira, Euronews: Tenho de abordar a guerra na Ucrânia. Na maioria das resoluções que foram adotadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas, e que visavam a Rússia, Angola absteve-se, Porquê?
João Lourenço, Presidente de Angola: Houve três resoluções, das três Angola absteve-se em duas. Abstenção não é reprovação. Abstenção é abstenção, deve ser interpretada como tal.
Na segunda resolução, Angola votou a favor da mesma, porque a resolução era muito concreta, visava sobretudo condenar a anexação das quatro regiões que compõem o Donbass, e Angola entendeu que a agressão em si já era má, já era grave, mas pior do que a agressão, era a anexação de um território alheio, de um país vizinho, membro das Nações Unidas. Portanto, aí Angola teve uma opção muito clara de votar a favor da resolução proposta, na altura.
No caso desta mais recente, Angola absteve-se. Mas antes teve o cuidado de procurar negociar – podemos utilizar esse termo – ou a retirada ou o aligeiramento, podemos assim dizer, apenas de um parágrafo. Estou a referir-me, concretamente, ao parágrafo operativo, como lhe chamam, ou P9, que se referia, digamos, a levar a um tribunal criminal internacional o agressor. Não é que isso não se possa fazer, mas nós entendemos, e conhecemos métodos de negociação, que quando se está a negociar tem de se deixar sempre uma porta aberta. E consideramos que neste momento a prioridade é levar a Rússia à mesa das negociações. Tudo deve ser feito no sentido de se levarem as duas partes, mas sobretudo a Rússia, à mesa das negociações para se conseguir um cessar-fogo que seja duradouro e negociar-se a paz não apenas com a Ucrânia mas com a NATO.
Nara Madeira: No seu entender, qual é o impacto desta guerra em África?
João Lourenço: África não é uma ilha isolada no mundo. Nós vivemos num mundo globalizado, com uma interdependência entre nações muito grande. Portanto, a crise económica, a crise energética, a crise de segurança que esta guerra da Ucrânia provocou afeta todos os países do mundo, sem exceção, e talvez mais o continente africano, porque nós temos mais vulnerabilidades.
Nara Madeira: O senhor presidente está empenhado em contribuir para a pacificação do continente africano. No caso da República Centro Africana defendeu o levantamento do embargo de venda de armas ao governo para que este pudesse defender-se. Essa é a única solução para a paz?
João Lourenço: Com certeza que não é a única. É preciso que o país cumpra com o roteiro de Luanda. De alguma forma começou a cumprir, mas o processo não está concluído. É preciso, portanto, negociar com todas as forças vivas do país, com a oposição, em particular, pelo menos aquela oposição que está no território centro africano. E dar oportunidades a outros atores políticos para que possam participar da vida política do país.
Nara Madeira: No caso do leste da República Democrática do Congo, há uma crise humanitária que é grave, derivada de uma guerra. Que iniciativas propôs na cimeira de chefes de Estado e de Governo (União Africana) para resolver esta crise?
João Lourenço: Está a referir-se a esta última de Addis Abeba?
Nara Madeira: Sim, exatamente.
João Lourenço: Bom, as propostas não foram apenas de Angola. São de vários chefes de Estado. O que é preciso destacar é que concluiu-se que é preciso que sejam dados dois passos, sobretudo um passo, que é procurar-se alcançar, a todo o custo, um cessar-fogo definitivo, porque ele foi violado sucessivas vezes, o que saiu na sequência da cimeira de Luanda foi violado sucessivas vezes.
É preciso alcançar um novo cessar-fogo. É preciso, imediatamente, após esse cessar-fogo, dar-se o passo seguinte de acantonamento das forças do M23. E para que haja este processo de acantonamento, a cimeira concluiu que há a necessidade do desdobramento da força regional, que é composta por quatro cinco países, o Quénia, o Burundi, o Sudão do Sul, o Uganda e a Tanzânia. Portanto, desses países apenas um já tem tropas no terreno. Estou a referir-me ao Quénia, que está a suportar as despesas da manutenção da sua força no terreno. Mas os outros quatro países estão com alguma dificuldade financeira em cobrir esta operação de desdobramento e a Cimeira da União Africana, sobretudo o seu Comité de Paz e Segurança, irá recorrer ao Fundo de Paz e Segurança do continente para cobrir essa despesa.
Nara Madeira: Como é que se negoceia com estes grupos armados?
João Lourenço: A cimeira de Addis Abeba incumbiu Angola de estabelecer o contacto direto com a liderança do M23, no sentido de convencê-los a aceitar o cessar-fogo e o acantonamento das suas forças. E nós iniciámos, imediatamente, o cumprimento desta missão que nos foi dada. E neste exato momento, Angola já está a manter contactos com a liderança do M23.
Nara Madeira: O atual contexto geopolítico obrigou a revermos as nossas prioridades. A Europa, neste momento, procura uma opção para substituir o gás russo. Angola é uma alternativa?
João Lourenço: Angola é uma alternativa. Angola, neste momento, produz mais petróleo do que gás, embora tenhamos algum gás. Mas constituímos um novo consórcio para a produção de gás. Portanto, várias multinacionais, em consórcio, vão começar a explorar mais gás em Angola, há reservas identificadas.
O gás em Angola não se desenvolveu muito, porque havia falta de legislação. Angola não tinha legislação específica para o gás, virada para o gás, e isso inibia, de alguma forma, as multinacionais. Mas esta situação está ultrapassada, desde 2017, e acreditamos que a produção de gás natural, não gás associado, em Angola vai conhecer um boom nos próximos anos e, portanto, a partir daí, a Europa pode contar com Angola como um importante fornecedor não apenas de gás como também de hidrogénio verde. Já estamos a fazer contactos com alguns países europeus para a produção de hidrogénio verde.
Nara Madeira: Angola continua a depender ainda quase, exclusivamente, do petróleo. Mas uma das bandeiras do seu governo é a diversificação da economia. Em que pé estamos?
João Lourenço: Estamos bem, estamos bem. Portanto, o setor não petrolífero da nossa economia está a conhecer um crescimento, digamos, satisfatório. E vamos continuar nesta senda. Mas vai levar algum tempo até que, digamos, as receitas provenientes do petróleo passem para segundo plano. Portanto, hoje ainda são as mais significantes, mas a tendência é de inversão. Há de chegar o momento da viragem em que o PIB nacional será constituído, sobretudo, por receitas vindas do setor não petrolífero.
Nara Madeira: Propõe-se desenvolver Turismo, Agricultura e Pescas. Em relação, por exemplo, ao turismo, há a chamada “diáspora histórica”. Estima-se que 12 milhões de cidadãos dos EUA tenham ascendência angolana. Como é que se pode potenciar essa ligação?
João Lourenço: Nós começámos a fazer contactos com alguns representantes da diáspora africana nos Estados Unidos da América. Realizaram já algumas visitas a Angola, digo a Angola e não apenas a Luanda. Não se limitaram a Luanda. Eles estão muito entusiasmados. Não digo em regressar, mas em estabelecer esta ligação, de alguma forma interrompida, ao longo dos séculos. Portanto, do nosso lado existe esse interesse e vamos dar todo o apoio necessário para que, hoje, os afrodescendentes mantenham esta ligação connosco, com o continente, em particular com Angola.
Nara Madeira: Hoje é mais fácil um empresário, um investidor, instalar-se em Angola?
João Lourenço: Sim, com certeza que é muito mais fácil. E quem o diz não sou eu. São eles próprios, uma vez que nós, ao longo destes pouco mais de cinco anos em que eu estou à frente dos destinos do país, uma das nossas preocupações foi criar um ambiente de negócios diferente daquele que encontrámos. Um melhor ambiente de negócios. Uma das particularidades desse melhor ambiente de negócios é, sem sombra de dúvidas, o combate à corrupção. Eu não posso garantir que já não haja corrupção em Angola. Aliás, há corrupção, há em todo o mundo. Mas o que eu posso garantir é que a corrupção em Angola, hoje, já não é feita de forma impune. Ou seja, sempre que as autoridades tomarem conhecimento desta prática, não importa por quem seja feita, o caso não ficará impune.
Nara Madeira: Na última cimeira da União Africana esteve com o primeiro-ministro português e António Costa disse que um dos tópicos que referiram foi como impulsionar as relações entre a Europa e África. O que é que Angola pode fazer a esse nível?
João Lourenço: O que é que Angola pode fazer a este nível? … Dizer aos europeus que o que nós queremos são verdadeiras relações de cooperação, o que às vezes não acontece, e queremos combater um certo paternalismo que por vezes existe. E dizer que nós também temos algo para oferecer à Europa, não é apenas a Europa que tem capital, que tem know-how para oferecer ao nosso continente. Nós também temos algo de muito importante a dar em troca. Portanto, o benefício da cooperação entre os nossos dois continentes é recíproco.
Nara Madeira: O que é que a União Europeia e os Estados-membros podem fazer para impulsionar também essas relações?
João Lourenço: O que a União Europeia pode fazer, e de alguma forma está a fazer, é discutir connosco de igual para igual, o interesse na cooperação Norte-Sul. Portanto, mudar algumas regras do jogo. É evidente que, hoje, o nosso continente está, praticamente, descolonizado, mas mesmo assim, mesmo tendo passado décadas após a colonização, as relações internacionais ainda não são justas. Há regras internacionais que são tudo no comércio, no comércio das matérias-primas, e precisamos de nos sentar e renegociar.
Aliás, não é à toa que nós pretendemos, África pretende ter um assento no G20, pretende ter um assento, um ou mais, os que forem possíveis, como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, precisamente para corrigir essas relações que, até à presente data, consideramos ainda, de alguma forma, injustas.
Nara Madeira: O secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, disse que Angola é um parceiro estratégico. Para si, em que domínios?
João Lourenço: Em domínios fundamentais da vida dos países, nomeadamente, no domínio da segurança, refiro-me à segurança internacional. Angola tem uma palavra a dizer. E no domínio económico, na produção de bens alimentares para alimentar o mundo. Nós temos território suficiente e água suficiente. Falta-nos capital e know-how, para sermos um país fornecedor de alimentos para… não para Angola, mas para o mundo.
Nara Madeira: Os EUA vão investir dois mil milhões de dólares num sistema fotovoltaico. Um dos objetivos de Angola é desenvolver as energias renováveis. Estão no caminho certo?
João Lourenço: Nós não estamos muito longe de atingir a meta por nós próprios estabelecida. Presentemente, 64% da energia produzida em Angola já não é de fontes poluentes, 64% da energia é hidroelétrica, essencialmente hidroelétrica, mas também já começa a ser fotovoltaica.
Inaugurámos no ano passado duas grandes centrais fotovoltaicas na província de Benguela. Temos um projeto previsto para o leste do país e temos este grande projeto com uma empresa americana que vai produzir e abastecer energia a quatro províncias do sul de Angola.
A nossa meta é, até 2026, darmos o salto, passar de 64 para cerca de 70% de energias de fontes limpas.
Nara Madeira: Para além de todas estas transformações económicas que estão já em curso, prometeu a criação de autarquias. Para quando as eleições?
João Lourenço: Isso não é uma questão de promessa.
Nara Madeira: Foi uma promessa eleitoral…
João Lourenço: Não, não é eleitoral, é uma decisão. Nós apresentámos esta questão das autarquias, logo depois do início do meu primeiro mandato. Portanto, eu vim para a Presidência da República de Angola em 2017 e, se não estou em erro, foi em 2018 ou 2019, não estou muito certo, que numa reunião do Conselho da República e, por iniciativa nossa, minha, falámos da possibilidade de organizarmos as eleições autárquicas. E isto é tudo um processo, é um processo.
Nunca houve eleições autárquicas em Angola. Vai ser a primeira vez. Vão acontecer quando? Não sei, mas vão ter de acontecer, necessariamente.
Para que haja eleições autárquicas é preciso que exista um suporte legal. Nós estamos num Estado Democrático de Direito. Tudo tem que ter um suporte legal. Os especialistas definiram um conjunto de mais de dez leis autárquicas e grande parte delas já estão aprovadas pela Assembleia Nacional, com exceção, creio, que de uma fundamental. Faltará mais do que uma, mas falta uma que é fundamental, que é a definição do timing para a realização dessas mesmas eleições.
Ou seja, há duas posições diferentes. Há quem pense que, logo pela primeira vez, o país deve realizar Eleições Autárquicas em todos os municípios do país. Esta é uma posição. E há quem seja mais prudente, não diria mais conservador, mas mais prudente, e considere que, por ser uma experiência nova, seria, digamos, dar um tiro no escuro, começando por realizar na totalidade dos municípios do país. Pensam que isso podia ser feito de forma faseada. Quando se ultrapassar este diferendo, entre forças políticas, aprova-se a lei e a partir daí o chefe de Estado estará em condições de criar as condições para convocar as Eleições Autárquicas.