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Domingo, Novembro 24, 2024

Portugal deve “pagar custos” da escravatura e dos crimes coloniais, diz o Presidente da Républica

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O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa disse na noite de terça-feira, numa reunião com jornalistas estrangeiros, que Portugal tinha responsabilidades pelos crimes cometidos durante a escravidão transatlântica e a era colonial, e sugeriu que havia necessidade de reparações. Estas declarações foram citadas em primeira mão pela Reuters.

Falando num evento com correspondentes estrangeiros, Marcelo Rebelo de Sousa disse que Portugal “assume total responsabilidade” pelos erros do passado e que esses crimes, incluindo massacres coloniais, tiveram “custos”, concluiu, sem concretizar como se faria tal reparação.

“Temos que pagar os custos”, disse ele. “Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso.”

Rebelo de Sousa disse no ano passado que Portugal deveria pedir desculpas pela escravatura transatlântica e pelo colonialismo. Fê-lo em 2023, na Assembleia da República, a propósito da sessão de boas-vindas ao Presidente brasileiro Lula da Silva, mas não chegou a apresentar um pedido de desculpas completo.

Ele disse na terça-feira que reconhecer o passado e assumir a responsabilidade por ele era mais importante do que pedir desculpas.

“Pedir desculpas é a parte fácil”, disse ele.

Durante mais de quatro séculos, pelo menos 12,5 milhões de africanos foram raptados, transportados à força por longas distâncias, principalmente por navios e mercadores europeus, e vendidos como escravos. Aqueles que sobreviveram à viagem acabaram trabalhando nas plantações nas américas, principalmente nos Estados Unidos, Brasil e Caraíbas.

Portugal, tal como outras nações europeias, traficou milhões de africanos, mas até agora não conseguiu enfrentar o seu passado e pouco se ensina nas escolas sobre o seu papel na escravatura transatlântica.

A ideia de pagar reparações ou de fazer outras reparações pela escravatura transatlântica tem vindo a ganhar força em todo o mundo, incluindo esforços para estabelecer um tribunal especial sobre a questão.

Um tribunal, inspirado em outros tribunais ad hoc, como os julgamentos de Nuremberg de criminosos de guerra nazistas após a Segunda Guerra Mundial, foi proposto no ano passado. Agora ganhou força dentro de um movimento mais amplo de reparação da escravidão.

Formalmente recomendada em Junho pelo Fórum Permanente da ONU sobre Pessoas de Descendência Africana, a ideia de um tribunal especial foi ainda mais explorada nos órgãos regionais de África e das Caraíbas.

O âmbito do tribunal não foi determinado, mas o Fórum da ONU recomendou num relatório preliminar que deveria abordar as reparações pela escravatura, o apartheid, o genocídio e o colonialismo.

A pressão para um tribunal decorre, em parte, da crença de que as reivindicações precisam de ser consagradas num quadro jurídico.

Várias instituições, incluindo a União Europeia , concluíram que a escravatura transatlântica era um crime contra a humanidade.

Após os julgamentos de Nuremberga na década de 1940, a ONU formalizou a estrutura de tribunais especiais – tribunais criminais criados numa base ad hoc para investigar crimes internacionais graves, como crimes contra a humanidade.

Um tribunal especial da ONU ajudaria a estabelecer normas jurídicas para reivindicações complexas de reparações internacionais e históricas, dizem os seus apoiantes. Os opositores às reparações argumentam, entre outras coisas, que os estados e instituições contemporâneos não devem ser responsabilizados pela escravatura histórica .

Até os seus apoiantes reconhecem que não será fácil estabelecer um tribunal internacional para a escravatura.

Os obstáculos incluem a obtenção da cooperação de nações envolvidas no comércio de pessoas escravizadas e as complexidades jurídicas de encontrar os responsáveis e determinar soluções.

Essas coisas aconteceram há muitos anos e os registos históricos e as evidências podem ser difíceis de avaliar e até mesmo de verificar. Ao contrário dos julgamentos de Nuremberga, ninguém diretamente envolvido na escravatura transatlântica está vivo.

Outra questão que complica ainda mais o debate é quem são as partes prejudicadas: americanos de descendência africana, africanos ou ambos os grupos. Na verdade, as pressões para a criação de um tribunal internacional para a escravatura têm vindo mais de americanos de descendência africana.

Se é verdade que a escravatura pode ser vista como um crime contra a humanidade e que os descendentes de escravos têm toda a legitimidade para exigir reparações, também é verdade que a retirada de milhões de pessoas do continente africano condicionou o processo histórico em África com repercussões altamente negativas nos sistemas sociais, económicos e políticos.

O debate sobre a escravatura é demasiado complexo, sobretudo a questão das reparações, quando todo o Ocidente beneficiou de uma forma ou de outra da escravatura. Os escravos que trabalhavam nas plantações no Brasil e nos Estados Unidos foram também explorados pelos ancestrais dos brasileiros e americanos brancos de hoje.

Para complicar ainda mais o debate, não é claro se a escravatura e o colonialismo fazem parte do mesmo processo histórico ou se são dois processos distintos.

Deixando de lado o debate, devemos reconhecer que o colonialismo faz parte da história contemporânea.

Não é necessário mergulharmos fundo na História para compreender o significado dos massacres de Pidjiguiti em agosto de 1959 na Guiné-Bissau, da Baixa do Cassanje em janeiro de 1961 em Angola, e de Wiriyamu em dezembro de 1972 em Moçambique, dos horrores do trabalho forçado e da guerra colonial.

Não é necessário procurarmos fundo na História para compreender o sofrimento dos milhares de presos políticos, e das suas famílias, ao serem enviados para os campos de concentração de São Nicolau e do Tarrafal.

Também não podemos deixar de perguntar porque é que o regime de Salazar não agiu antecipadamente para evitar o massacre de centenas de portugueses em março de 1961 em Angola, quando tudo indica que a PIDE tinha informações dos serviços secretos de alguns países europeus do que estava para acontecer.

Tudo isso, e muito mais, faz parte da História contemporânea entre Portugal e as colónias africanas. Neste sentido, não é necessário perder-se na complexidade dos meandros jurídicos da escravatura. Basta criar comissões conjuntas para investigar o que aconteceu durante a colonização e agir com base nas recomendações propostas.

Os capitães do 25 de Abril devolveram a liberdade ao povo português e abriram caminho à redenção do regime colonial. Hoje, ao celebrarmos o 25 de Abril, parece-nos mais sensato focar-nos neste tema e tentar construir uma narrativa partilhada do caminho que percorremos, das reparações a fazer e para onde vamos.

Por: José Correia Nunes
Diretor Executivo Portal de Angola

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