Marcelo perdeu mais de 1,2 milhões em Belém. Ana Gomes tem o maior património. João Ferreira e Marisa Matias deram a volta em Bruxelas. André Ventura tem o dinheiro todo à ordem.
Há uma grande diferença entre a última declaração de rendimentos entregue por Marcelo Rebelo de Sousa, em junho de 2018, e a penúltima, no fim de 2015 – uma diferença de 248 mil euros brutos de rendimento anual. A queda explica-se pela grande mudança na vida de Marcelo: a Presidência da República.
Antes de ir para Belém, Marcelo declarava cerca de 395 mil euros brutos de rendimento anual respeitantes a 2014, dois terços dos quais como trabalhador independente – a atividade como jurista que faz pareceres e como comentador televisivo mais bem pago do País. Tudo isso desapareceu com o novo cargo.
O Presidente declarou em 2018 ter recebido 137 mil euros, pouco mais do que como professor catedrático em mais do que uma faculdade de Direito. Um exercício simples dá uma ideia genérica do preço, literalmente falando, que a Presidência teve: assumindo como constante ao longo do mandato de cinco anos o último rendimento declarado antes de chegar a Belém, Marcelo sacrificou 1,24 milhões de euros brutos de rendimento.
O dever de entrega das declarações de rendimentos e de património de titulares de cargos públicos serve para identificar acumulações de cargos e rendimentos, saltos súbitos no rendimento e património ou a coerência entre a linha política e a vida pessoal.
É um instrumento de transparência, que também expõe a vida financeira desses titulares, permitindo ver a trajetória das suas finanças pessoais, a comparação com a sociedade em que vivem e a forma como investem.
A SÁBADO analisou as declarações de cinco dos seis candidatos conhecidos à Presidência da República, que ocuparam cargos
públicos ao longo dos últimos anos e têm as suas declarações para consulta no Tribunal Constitucional
Marcelo Rebelo de Sousa distingue-se nesta vertente dos restantes candidatos – é o único cuja situação financeira fica (muito) pior com o exercício do cargo a que se candidata. Sem imobiliário – Marcelo preferiu sempre ser inquilino –, o seu património está concentrado nas poupanças, que em meados de 2018 ascendiam a cerca de 193 mil euros, espalhados entre um PPR e fundos de investimento.
Apenas dois anos antes, estas poupanças eram de 335 mil euros, o que sugere que o Presidente tem mantido o seu padrão de despesas e apoios (Marcelo contribui com quotas para muitas associações que o foram abordando quando comentava para a TVI, por exemplo) apesar da quebra de rendimentos.
A zero continua o seu passivo – Marcelo não tem dívidas e raramente as teve, pelo menos desde 1996, data da primeira declaração. O seu desapego pela propriedade – a não ser de livros – reflete-se na ausência de carro (os que foi usando eram maioritariamente em regime de aluguer de longa duração).
A degradação das suas finanças deixa a candidata Ana Gomes como aquela que tem o maior património entre os cinco que a SÁBADO analisou. Na sua última declaração, entregue em agosto do ano passado por cessação do cargo de eurodeputada, a candidata socialista que corre sem apoio do PS identificava poupanças de pelo menos 215 mil euros, distribuídas entre depósitos a prazo, obrigações do tesouro português e contas à ordem – escreve-se “pelo menos” porque há uma linha com um PPR cujo valor não se consegue ler no printscreen que Ana Gomes fez do formulário digital a entregar no TC.
A candidata explicou à SÁBADO que se recorda de que o valor do PPR na Caixa Geral de Depósitos era “baixo” – a cópia em papel com que ficou da declaração também tem o valor fora do campo de visão – e que o saldo atual está em 1.537,33 euros.
Ana Gomes nem sempre preencheu corretamente as declarações nos últimos anos – há por vezes contas bancárias sem indicação do montante como previsto na lei e na última lê-se o aviso “existem campos preenchidos incorretamente devidamente assinalados”. Mas mostrou-se muito à vontade para falar sobre a sua vida financeira.
À SÁBADO explicou que desde a entrega da última declaração investiu 80 mil euros em dívida pública portuguesa e enviou alguns extratos de conta com valores que terá de indicar na declaração que, como os restantes concorrentes ao cargo, entregará no Tribunal Constitucional por ser candidata à Presidência. Sobre as omissões pontuais nas declarações defendeu que tentou sempre cumprir os deveres de transparência.
A juntar às aplicações, Ana Gomes declara um T2 em Cascais – onde vive e que comprou por 260 mil euros – e um terreno na ilha açoriana do Pico. Já vendeu o apartamento que comprara em Bruxelas durante os mandatos no Parlamento Europeu (“paguei muito ao Fisco português por essa venda”, diz).
Tem um crédito à habitação por saldar, de 145 mil euros. Declara 104 mil euros de rendimentos por conta de outrem relativos a 2018 – além deste valor estão os cerca de 600 euros por programa semanal que ganha a comentar na SIC, valor que como a SÁBADO já noticiou é entregue à associação Transparência e Integridade.
Quando o cargo ajuda
Nenhum dos candidatos à Presidência analisados pela SÁBADO é propriamente rico – só um candidato tem mais de duas casas (já lá iremos) de segmento médio, ninguém declara barcos ou carros de luxo e o nível máximo de poupanças é o declarado por Ana Gomes.
Contudo, num país em que o salário médio rondou em 2019 os mil euros (segundo o INE) e em que 50% das pessoas não tem um fundo de emergência que permita fazer face a uma despesa de 650 euros (segundo a empresa de recuperação de crédito Intrum Justitia), a vida financeira dos candidatos está naturalmente bastante acima do cidadão comum. Marcelo Rebelo de Sousa, Ana Gomes, Marisa Matias e João Ferreira declararam até 2018 rendimentos brutos do trabalho acima de 100 mil euros, presentes só em 0,85% das declarações de IRS entregues pelos contribuintes portugueses nesse ano, segundo as estatísticas da Autoridade Tributária.
André Ventura, com rendimentos brutos superiores a 60 mil euros, estava nos 5% que mais declararam rendimentos do trabalho em 2018.
Nos candidatos mais à esquerda esta distância para a baixa média nacional já foi muito curta ou inexistente. Na primeira declaração de rendimentos entregue no TC em 2009, Marisa Matias, do Bloco de Esquerda, indicava como profissão “socióloga”, declarava apenas 270 euros de rendimento a recibos verdes, um pequeno apartamento em Coimbra (morada permanente), uma conta poupança reforma com saldo de 1.332 euros e um crédito relativo à casa de 93.410 euros.
O contraste para a declaração mais recente, entregue em setembro do ano passado quando terminou o segundo mandato, é evidente – a melhoria foi sendo visível de forma gradual nas declarações entregues entre 2009 e 2019. Como eurodeputada declarou 104.214 euros de rendimento bruto anual em 2018.
O património melhorou naturalmente em função do salário em Bruxelas, confirma a candidata através da assessoria do Bloco: em setembro de 2019 declarou cerca de 30 mil euros em contas a prazo no banco público (todos os candidatos de esquerda têm conta na Caixa) e um PPR no BCP de 5.760 euros. Conseguiu abater antecipadamente o crédito à habitação, do qual restam cerca de 46 mil euros por pagar. Continua sem carro.
Fonte oficial do Bloco indica que enquanto eurodeputada Marisa Matias não descontou parte do salário para o partido, mas que foi correspondendo a pedidos avulsos para associações ou situações concretas: 1.080 euros para a Amnistia Internacional, 1.500 euros para a defesa de Miguel Duarte em Itália (acusado de auxílio à migração ilegal), 1.100 euros para associações de apoio aos sem-abrigo, 1.200 euros para uma campanha de financiamento de um filme português, entre outros.
No caso do comunista João Ferreira, a história tem alguns contornos idênticos. Em 2009, à entrada para o cargo de eurodeputado, o biólogo declarou cerca de 18 mil euros de rendimento bruto anual, mais de um terço a recibos verdes. Tinha um apartamento na freguesia lisboeta da Ameixoeira cujo valor não indicou na altura, mas em relação ao qual, já em 2017, inscreveria o valor patrimonial tributário de 93 mil euros. Não declarava poupanças e devia ao banco quase 90 mil euros pela compra da casa. Não tinha carro.
A situação foi melhorando nos anos seguintes, período em que também casou. Na declaração entregue em setembro de 2019 indicava um rendimento anual bruto de 136 mil euros, mais de três quatros do qual oriundo do salário como eurodeputado (que acumulava com a vereação sem pelouro na Câmara Municipal de Lisboa). Indicou também 11.300 euros em rendimentos prediais – isto porque ao mesmo tempo que comprou um apartamento novo na freguesia lisboeta do Lumiar, com valor patrimonial tributário de 100 mil euros, manteve o da Ameixoeira.
O candidato presidencial do PCP é o único senhorio entre os candidatos a Belém e o que declara nesta frente sugere uma renda bruta de 945 euros, uma renda de mercado naquela zona por um T2 com garagem. No capítulo das dívidas tem hoje uma ao BCP, de 161 mil euros, relativa a crédito à habitação.
João Ferreira também é o único que hoje tem uma participação social (750 euros) no capital de uma empresa – a consultora Orango, microempresa da sua família, que em 2019 faturou 17 mil euros, teve 2.800 euros de lucro e não empregou pessoas por conta de outrem (no ano anterior, segundo a Informa DB, empregara duas).
Em declarações anteriores indicava uma pequena quota de 250 euros numa sociedade leiriense dedicada ao turismo. As perguntas da SÁBADO enviadas para o PCP – sobre a confirmação do valor da renda cobrada, a tipologia da casa arrendada e a eventual doação de parte do salário de eurodeputado ao partido – não tiveram resposta até ao fecho da edição.
Ventura à ordem
O candidato da direita radical, André Ventura, tem duas declarações entregues: uma em 2018 (bem depois do prazo legal de 60 dias) como vereador da câmara de Loures pelo PSD e outra em 2019, já como deputado eleito pelo Chega!
Nessa última declarou 63.608 euros de rendimento anual bruto em 2018, cerca de 42% como trabalhador por conta de outrem (o salário de professor universitário de Direito) e o resto em recibos verdes como comentador da CMTV (detida pela Cofina, proprietária da SÁBADO) e do trabalho de consultoria legal para a sociedade de advocacia Caiado Guerreiro.
Fora destes rendimentos de 2018 está o que ganha por um cargo que aponta ter começado em 2019 na declaração entregue ao Tribunal Constitucional: o de consultor de outra sociedade do universo Caiado Guerreiro, a Finpartner. A acumulação de funções colidiu com a defesa do regime de exclusividade dos deputados que o próprio Ventura defendia, motivando escrutínio dos media e críticas do Bloco.
Já anunciado como candidato presidencial, Ventura disse em março ao Observador que até junho deixaria a Finpartner. Tiago Caiado Guerreiro confirma à SÁBADO que André Ventura deixou em junho de trabalhar para a sociedade que, entre outras coisas, presta assessoria para baixar a fatura com impostos. Em maio, a CMTV já dispensara o comentador.
Além dos rendimentos, André Ventura declarava uma conta à ordem com cerca de 48.900 euros e uma dívida de 9.417 euros relativa ao crédito automóvel na Credibom, com que comprou um BMW série 1. De todos os candidatos presidenciais analisados pela SÁBADO, o do Chega! é o único que não diversifica minimamente as poupanças e as concentra por inteiro numa conta à ordem.
É uma opção que peritos em finanças pessoais tipicamente desaconselham e que é muito seguida pelos portugueses: mais de 43% do dinheiro depositado nos bancos em Portugal está à ordem.
“Não tenho jeito para investimentos, nem para aplicações – essa é a única razão”, diz à SÁBADO. Ventura junta ainda que está “a perder muito dinheiro” com o cargo de deputado e que “tem saudades de estar na televisão”.
Além de Ventura, todos os candidatos são conservadores na gestão das poupanças. Só Marcelo teve ações no passado, tendo hoje participações em PPR e fundos de perfil “conservador”. Marisa Matias e Ana Gomes têm as poupanças distribuídas por opções sem risco. João Ferreira junta os depósitos às rendas.
À exceção de Marcelo, todos têm dívida por amortizar. Marisa Matias foi a única que fez o que qualquer especialista em finanças pessoais aconselha a quem não gosta de risco e tem poupanças suficientes para aguentar meio ano no desemprego: amortizou antecipadamente parte do crédito à habitação.
Tiago Mayan Gonçalves, candidato do Iniciativa Liberal, vai entregar a primeira declaração ao TC. O IL adianta que o médico só tem rendimentos do trabalho – que indicará primeiro ao TC por “respeito institucional”. Só tem a casa própria e não tem carro