Muitos sul-africanos negros manifestaram o seu desconforto com o facto de um partido liderado por brancos estar de volta ao poder, mesmo numa coligação.
Num país onde a segregação racial já foi brutalmente aplicada, o novo governo de coligação da África do Sul juntou um presidente negro e um líder da oposição branco numa imagem de unidade.
No entanto, o acordo de partilha de poder selado há uma semana entre o partido do Congresso Nacional Africano, do Presidente Cyril Ramaphosa, e a Aliança Democrática, um dos poucos partidos liderados por brancos da África do Sul, renovou involuntariamente algumas clivagens raciais.
Muitos sul-africanos negros expressaram desconforto com o facto de um partido liderado por brancos estar de volta ao poder, mesmo numa coligação. O país é assombrado pelo sistema do apartheid, um regime de minoria branca que terminou há 30 anos, mas que ainda é sentido por milhões de pessoas da maioria negra que foram, impiedosamente, oprimidas por um governo branco e que continuam a ser afectadas por questões não resolvidas de pobreza e desigualdade.
A África do Sul vê-se agora confrontada com a possibilidade de ver mais brancos em altos cargos governamentais do que nunca desde o fim do apartheid. Os brancos representam cerca de 7% da população do país, que é de 62 milhões de habitantes.
O ANC libertou a África do Sul do apartheid em 1994, sob a direção de Nelson Mandela, o primeiro presidente negro do país. O seu domínio político de três décadas terminou nas eleições históricas de 29 de maio, obrigando-o a formar uma coligação. O DA, que tem as suas raízes em partidos brancos liberais que se opuseram ao apartheid, obteve a segunda maior percentagem de votos.
Ambos promoveram a sua união numa coligação multipartidária como uma nova unidade desesperadamente necessária num país com vastos problemas socioeconómicos.
Mas a história mantém-se. O DA suspendeu um dos seus deputados brancos na quinta-feira, dias depois de ter tomado posse no Parlamento, devido a insultos racistas que proferiu num vídeo nas redes sociais há mais de uma década. Renaldo Gouws – alegadamente um estudante na casa dos 20 anos na altura -, utilizou um termo especialmente ofensivo para os negros, que foi infame durante o apartheid e é agora considerado discurso de ódio.
Gouws enfrenta uma ação disciplinar do seu partido e a Comissão Sul-Africana dos Direitos Humanos disse que o levará a tribunal. O DA, que anteriormente se defendeu de alegações de favorecimento dos brancos, está novamente sob escrutínio.
O Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos, um importante aliado político do ANC, afirmou que a explosão de Gouws era sintomática de um DA que é “brando com os racistas”. O DA “precisa de refletir e abordar esta questão se quiser ser aceite como parceiro no governo de unidade nacional pelos sul-africanos comuns”, afirmou.
O líder do DA, John Steenhuisen, negou, numa entrevista televisiva, que o seu partido se dedique apenas aos interesses dos brancos, afirmando que, se assim fosse, não teria obtido a segunda maior percentagem de votos num país de maioria negra. O DA tem legisladores e apoiantes negros e brancos, mas o seu único líder negro deixou o partido em 2019, questionando o seu compromisso com os sul-africanos negros.
O analista político Angelo Fick disse que o DA tem um “sentido de brancura” aos olhos de muitos sul-africanos e criou-o ao ser “totalmente desinteressado em falar sobre as preocupações raciais dos sul-africanos negros”.
Pouco antes do caso de Gouws, a linguagem racial veio de outra direção, quando o Partido MK do antigo Presidente Jacob Zuma – outrora líder do ANC – chamou a Ramaphosa um “negro da casa” por ter celebrado o acordo com o DA. O partido de Zuma também se referiu à presidente branca do DA, Helen Zille, como a “dona de escravos” de Ramaphosa.
O Partido MK e os Combatentes da Liberdade Económica – o terceiro e o quarto maiores partidos no Parlamento – recusaram-se a aderir ao que o ANC chama um governo de unidade nacional aberto a todos. A razão fundamental é o DA, que, segundo eles, está empenhado apenas no bem-estar da minoria branca da África do Sul.
“Não concordamos com este casamento de conveniência para consolidar o poder monopolista dos brancos sobre a economia”, afirmou o líder do EFF, Julius Malema.
Malema tem, por vezes, provocado tensões raciais ao exigir mudanças, tendo em tempos afirmado que “não estamos a pedir o massacre de pessoas brancas, pelo menos por agora” e que o “homem branco da África do Sul tem estado demasiado confortável durante demasiado tempo”.Atualmente, Malema afirma que o seu partido não é contra os brancos, mas sim contra um “privilégio branco” que deixa 64% dos negros na pobreza, em comparação com 1% dos brancos, de acordo com um relatório de 2021 da Comissão dos Direitos Humanos da África do Sul.
Malema representa uma nova oposição ao ANC por parte de muitos sul-africanos negros frustrados com a desigualdade baseada na raça que é evidente após 30 anos de liberdade. Os brancos vivem geralmente em bairros nobres. Milhões de negros vivem em bairros pobres da periferia.
Essa frustração levou muitos eleitores a desistirem do ANC. As preocupações com a formação de uma equipa com o DA podem enfraquecer ainda mais o partido. No seu discurso de tomada de posse na quarta-feira, Ramaphosa reconheceu as divisões “tóxicas” que permanecem décadas depois de Mandela ter pregado a reconciliação racial. “A nossa sociedade continua profundamente desigual e altamente polarizada”, disse Ramaphosa.
O ANC está a tentar usar a coligação como uma espécie de reinício dos ideais de Mandela.
“Para nós, não importa se o gato é preto ou branco”, disse o secretário-geral do ANC, Fikile Mbalula, sobre o acordo com o DA. Mandela utilizou a frase para indicar que estava aberto a que todas as raças servissem no governo da África do Sul.
“Fundamentalmente”, disse Mbalula, “a questão é como é que vamos fazer o país avançar”.