Não tenho como não dedicar esta crónica ao jornalista/escritor Ismael Mateus que nos deixou na passada terça-feira, dia 2 de Outubro, vítima de um acidente de viação, aos 60 anos de idade.
Esta é uma daquelas raras oportunidades em que falar de uma pessoa que bem conhecemos em vida e a quem nos ligaram profundos laços de amizade pessoal e camaradagem profissional permite reflectir sobre a história mais recente da Angola no pós-independência, sem necessidade de outros enquadramentos.
Estamos a falar de num país que continua a ser fortemente partidarizado com todas as consequências que tal estado de coisas representa para a vida das pessoas.
Habituamo-nos a falar do passado deste país apenas com base nas figuras saídas das narrativas oficiais, os tais heróis, que muitas vezes não resistem minimamente a uma revisão mais crítica sobre o que realmente fizeram em prol de Angola, se é que fizeram mesmo alguma coisa digna de reconhecimento.
O Ismael Mateus está muito longe de preencher os critérios desta narrativa quer pela sua idade, quer pelo facto de nunca ter estado no topo de nenhuma hierarquia politico-partidária deste país, embora se identificasse mais com o partido no poder, sem jamais ter hipotecado a sua independência política e autonomia intelectual.
De repente, e pelo conjunto das múltiplas reacções que em catadupa se fizeram ouvir à notícia da sua morte prematura, o país descobriu que teve um cidadão comum, mas de muito mérito que em vida se chamou Ismael Mateus Sebastião, natural do Sambizanga, como ele próprio gostava de se apresentar.
Conseguiu-se chegar àquilo que não é nada fácil em Angola, acredito que também não o seja noutras latitudes, que é a unanimidade pela positiva em torno de uma personalidade que se desdobrou por vários campos de actividade, tendo no jornalismo a sua principal e originária referência. Um espírito profissional ele soube conservar até ao seu último dia desta viagem terrena, mesmo depois de ter deixado de estar no activo já lá vão bastantes anos.
O seu último projecto era organizar um Congresso aberto sobre o jornalismo que temos em Angola.
É uma conclusão arriscada, porque em termos objectivos iriamos, certamente, precisar de uma outra avaliação mais quantitativa, num país onde os estudos de opinião/sondagens continuam muito incipientes, enquanto actividade empresarial credível.
Assumimos este risco, porque sentimos sobretudo esta unanimidade em torno da figura do Ismael Mateus nas redes sociais que já são um barómetro não negligenciável, mesmo considerando que o acesso dos angolanos à Internet para além de ser caro, ainda é caracterizado por uma taxa de info-exclusão muito grande.
Olhando para a trajectória profissional do Ismael Mateus que começa bem no início dos anos 80 na Rádio Nacional como um simples jornalista de base é possível de facto percebermos como é que o jornalismo em Angola evoluiu dos tempos apertados e politicamente controlados do monopartidarismo até aos dias de hoje com todos os direitos e liberdades fundamentais já constantes do ordenamento jurídico, a começar pela Constituição.
Nesta já longa travessia, Ismael Mateus muito cedo e muito jovem se tornou um protagonista do jornalismo do pós-independência, quer como repórter quer pelos cargos editoriais que foi desempenhando na Rádio Nacional de Angola ao mesmo tempo que desenvolvia uma queda acentuada para a crítica social, com uma coluna de opinião semanal que ficou muito famosa denominada “Bwé de Bocas”.
A crónica destacou-se rapidamente na época pela ousadia e frontalidade com que o jornalista ia apontando pontualmente e ao ritmo da actualidade as fragilidades colectivas e individuais que faziam o quotidiano do país.
Esta queda para a crítica social viria a ser estruturante de toda a sua intervenção pública como colunista, mas não só, que se desenvolveu ao longo de toda a sua vida.
O protagonismo do Ismael teve vários outros momentos depois de ter deixado a Rádio Nacional no início dos anos 90 já com a abertura política a fazer soprar sobre o país os seus ventos mais pluralistas/democráticos e com a liberdade de imprensa a ser consagrada na primeira lei de imprensa que então foi adoptada após mais de 15 anos de independência.
Um protagonismo que começou por passar pela direcção da informação da primeira estação privada de rádio que foi autorizada a transmitir em Angola e que se chamou Luanda Antena Comercial (LAC).
É por essa altura que Ismael Mateus abraça ao lado de outros confrades o desafio da criação do Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA), que entra para a história da própria democratização do país, pois foi a primeira organização sindical independente a surgir em Angola fora da tutela da então central sindical única e com a grande bandeira da defesa da liberdade de imprensa que se mantém até aos dias de hoje como a principal imagem de marca da organização.
Como protagonista e já na sua vertente de empreendedor o seu ponto mais alto foi a criação do semanário “Cruzeiro do Sul” baseado em Benguela, numa altura em que praticamente todos os jornais privados se editavam em Luanda.
Fora do circuito mediático, Ismael Mateus aceita o desafio durante alguns anos para dirigir uma instituição pública, no caso o já extinto Instituto de Formação da Administração Local (IFAL), onde também fez história com o seu desempenho e a sua liderança.
Até ao fim dos seus dias Ismael Mateus foi membro do Conselho da República, cargo que ocupava desde 2017 a convite do Presidente João Lourenço e onde ele melhor e ao mais alto nível político terá corporizado a sua ideia de ser cidadão independente e actuante colocando em primeiro lugar os interesses nacionais em detrimento das estratégias partidárias.
A sua posição favorável em relação à concretização das autarquias fala bem desta visão, sabendo todos nós que o processo só não tem avançado por manifesta falta de vontade política do Executivo de João Lourenço e do MPLA.
Sendo apenas uma instância consultiva o referido Conselho não tinha (nem tem) qualquer competência/capacidade para alterar o curso das políticas do Executivo.
A sua morte permitiu-nos hoje saber que Ismael Mateus ao lado de mais duas ou três pessoas com assento no Conselho da República têm sido das poucas vozes que nas raras reuniões deste órgão têm realmente dito ao Presidente da República o que pensam dos temas trazidos à consulta por João Lourenço.
Também se ficou a saber que à semelhança do que acontecia no tempo de José Eduardo dos Santos, também João Lourenço parece mais interessado em aconselhar os seus Conselheiros do que em ser aconselhado por eles, no que se apresenta como sendo a caricatura perfeita mas real do funcionamento deste órgão.
Se quiséssemos fazer uma síntese do Ismael Mateus, pelo que temos conhecimento das suas simpatias políticas e posicionamentos vários ao longo dos tempos de uma caminhada que chegou agora ao fim, talvez falássemos de alguém que soube sempre manter o diálogo com a diferença, evitando rupturas, preservando as amizades.
A experiência do meu relacionamento com ele é para aí que aponta, pois foram várias as vezes em que as nossas perspectivas políticas conflituaram sobretudo quando em discussão estava o melhor futuro para Angola.