Quase metade das mulheres em 57 países não têm liberdade de decisão sobre o seu corpo, desde ter relações sexuais até ao uso de contracepção ou ao acesso a cuidados médicos, uma realidade acentuada na África Subsaariana.
O retrato é traçado no relatório anual sobre o Estado da População Mundial – produzido pelo Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA) e apresentado hoje em Genebra -, que analisou pela primeira vez a autonomia das mulheres na tomada de decisões sobre o ser corpo.
Intitulado “O Meu Corpo é Meu”, o relatório pormenoriza as violações dos direitos das mulheres nestes países, desde a violação à esterilização forçada até à imposição de testes de virgindade ou à mutilação genital.
Também analisa como as mulheres não estão autorizadas a tomar decisões sobre o seu próprio corpo sem risco de violência ou de serem sujeitas à decisão de outra pessoa sobre a sua integridade física.
O relatório centra-se principalmente em três questões: se as mulheres podem dizer não ao sexo, se podem decidir sobre o uso de contracetivos e se podem decidir sobre os cuidados médicos.
De acordo com o documento, que se baseia em dados de 57 países em desenvolvimento, incluindo os lusófonos Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, apenas 55 por cento das mulheres podem decidir plenamente nestas três áreas.
Esta percentagem, contudo, variam significativamente entre regiões: enquanto na América Latina e nas Caraíbas e no Leste e Sudeste Asiático cerca de 75 por cento das mulheres têm o seu direito à autonomia corporal respeitado, na África Central e Ocidental esse número é inferior a 40 por cento.
Em três países da África Subsaariana – Mali, Níger e Senegal – a capacidade de tomar decisões sobre o seu corpo é reconhecido a menos de 10 por cento das mulheres, segundo o estudo.
Em alguns países, como o Mali, o relatório mostra que uma clara maioria de mulheres pode decidir sobre contracetivos, mas apenas 22 por cento pode fazê-lo quando se trata de procurar cuidados médicos e apenas uma em cada três mulheres pode recusar sexo.
Em Angola, 62% das mulheres têm autonomia para tomar decisões nas três questões analisadas, um valor que desce para 49 por cento em Moçambique, para 46 por cento em São Tomé e Príncipe e para 40 por cento em Timor-Leste.
No conjunto da África Subsaariana, menos de uma em cada duas mulheres (48%) tem autonomia para tomar estas decisões.
O relatório aponta que apenas 56 por cento dos países inquiridos têm leis e políticas abrangentes sobre educação sexual.
O relatório enumera ainda 20 países ou territórios que têm leis que permitem que um violador se case com a sua vítima para escapar à acusação e 43 estados que não têm leis sobre violação conjugal.
Mais de 30 países impõem restrições ao movimento das mulheres fora de casa.
O estudo foi apresentado em Portugal, durante uma sessão em formato digital, pela directora-executiva do FNUAP em Genebra, a portuguesa Mónica Ferro, e contou com a participação do secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação e presidente da Comissão Nacional para os Direitos Humanos (CNDH), Francisco André.
“Muitas vezes, quando perguntadas, as mulheres e raparigas não sabem que têm o direito a dizer não a ter relações sexuais com o seu marido. É um dado muito interessante e que tem muito a ver com o trabalho que tem de ser feito ao nível das normas sociais e da educação”, disse Mónica Ferro.
A directora-executiva do FNUAP assinalou ainda que a negação da autonomia corporal reveste formas tão diferentes como o casamento infantil, a mutilação genital, a violação conjugal e as leis que ditam o casamento com os violadores, entre outras práticas.
“Alcançar a autonomia e a integridade corporal depende da igualdade de género e de afastarmos as normas e as práticas patriarcais que veem a mulher ainda como tendo menos direitos do que o homem e o seu bem-estar como sendo menos relevante”, considerou.
Por seu lado, o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, Francisco André, sublinhou a pertinência da abordagem do relatório, considerando que as suas conclusões serão “extremamente valiosas” e darão um “contributo da maior relevância quer no plano interno quer no contexto da política de cooperação e dos projetos com os países parceiros”.