Não, entendem analistas. Para um, as suas contundentes críticas ao seu sucessor é só manifestação de descontentamento. Para outro, é apenas reacção à uma pretensa “traição” de um pacto no âmbito das dívidas ocultas.
No começo deste mês, o ex-estadista moçambicano Armando Guebuza implicitamente questionou a liderança do seu sucessor Filipe Nyusi ao por em causa o comando do exército em Cabo Delgado, onde os insurgentes têm evidenciado domínio.
Não foi o primeiro apontar de dedo ao Presidente moçambicano e ao seu Governo. Igualmente a frequência dos “ataques” aumenta, tal como sobe o seu tom, o que denuncia um mal-estar entre os dois.
Determinados sectores de opinião acreditam que se trata de uma tentativa de Guebuza fragilizar Nyusi e assim abrir caminho para concorrer às presidenciais de 2024.
Mas esta é uma teoria que não ganha coro em todos os círculos de análise, como por exemplo para o académico e assumido “Guebuzista” Elísio Macamo.
“Não, eu não acho que haja uma razão para pensar que o antigo Presidente tenha ambições presidenciais. Penso que as críticas são uma manifestação de desapontamento e decepção em relação a forma como o seu próprio partido e o chefe de Estado tem estado a lidar com esta situação”, acredita.
Dívidas ocultas no centro da discórdia?
Antes disso, em Setembro, o ex-Presidente criticou a Procuradoria-Geral da República (PGR), afirmando que não confiava no órgão, depois deste ter solicitado ao Conselho de Estado permissão para ouvi-lo no âmbito do escândalo das dívidas ocultas.
Em Moçambique há a forte percepção que a PGR é um órgão altamente politizado, dependente dos comandos presidenciais, tal como era durante o consulado de Guebuza.
Por isso, para o jornalista e proprietário do semanário Savana, Fernando Lima, a acção da PGR é o motivo dos ataques frontais de Guebuza a Nyusi.
“Não penso que as últimas declarações de descontentamento de Armando Gurebuza representem qualquer ambição presidencial, uma intenção de ser candidato ou de se tornar particularmente notado”, acredita também Lima.
O jornalista tem outra desconfiança: “Penso que sobretudo correspondem a violação de um pacto no seio da FRELIMO e que em última análise significa que a questão das dívidas ocultas escondidas não seria jamais aberta ou levada aos tribunais”.
Guebuza foi “moeda” de troca?
Em suma, terá havido uma “traição” ao mais alto nível, numa espécie de “troca de cabeças”, que pode fragilizar Armando Guebuza e salvar a “outra cabeça” do pior, o que explicaria os duros ataques do ex-estadista.
Contudo, é sobejamente sabido que o partido no poder não vive os seus melhores dias em termos de coesão. Acredita-se que há uma ala “mais madura” na FRELIMO descontente com Filipe Nyusi pela maneira como gere as crises do partido e do próprio país.
E o jornalista bate na mesma tecla: “Penso que o que se está a passar é que agora ele é visado individualmente no processo das dívidas ocultas, por uma investigação sobre dinheiros que eventualmente teriam entrado no partido FRELIMO fruto de uma oferta da Privinvest, empresa envolvida nas dívidas ocultas, e também pela menção do seu nome num tribunal de Londres que a PGR diz que não tem nada a ver com o assunto, que foi uma iniciativa do Credit Suisse. Penso que esta é a causa próxima das reacções de Guebuza”.
Para Fernando Lima, “claro está que o antigo Presidente goza de muitos apoios no partido FRELIMO e este sector está muito inconformado com o rumo que as dívidas escondidas estão a tomar com o envio a tribunal de pessoas conotadas com a governação Guebuza”.
Contudo, no país, sectores “propagandistas” que se assumem próximos ao Presidente Nyusi tentam “tapar o sol com a peneira” minimizando as tensões entre as partes, num esforço inglório de passar a imagem de bem-estar na FRELIMO.
Guebuza, a voz dos descontentes?
Estará Guebuza destemidamente “a dar a cara” a esse grupo de descontentes na FRELIMO?
“Eu não saberia dizer se existem alas na FRELIMO e se os pronunciamentos do antigo Presidente são uma manifestação de uma ala que estaria contra o actual Presidente”, responde Macamo.
E o sociólogo contextualiza: “Na verdade, duvido muito dessa hipótese de existência de alas. Para já, a FRELIMO não tem essa tradição de alas. Historicamente sabemos que só há vencidos e vencedores, já foi assim durante a luta armada de libertação nacional com a chamada linha revolucionária e a linha reaccionária”.
“Portanto, a FRELIMO não tem uma cultura política que aprecia muito a diferença de opinião. É um partido que se orienta muito pela unanimidade, o que muitas vezes pode levar a esclerose intelectual do partido. E nesse sentido não há como falar de alas e dizer que Guebuza estaria a apoiar uma certa ala contra Nyusi”, finaliza Macamo.
Estaria então Guebuza a rebelar-se contra o princípio partidário da unanimidade?