Lazarino Poulson é jurista e autor de várias obras no ramo de direito. Reconhecendo que em Angola impera um sistema parido de “um período de partido único” em que este mesmo partido “mandava em todas as instituições do Estado, incluindo nos tribunais”, o também docente universitário, em exclusivo ao Club-k, apresenta as quatro linhas de forças para que “os juízes angolanos alcancem verdadeiramente a independência face ao poder Executivo” estabelecendo “princípios e regras no nosso direito positivo”.
1. Qual a sua apreciação do ambiente político que se vive hoje no nosso país?
LP- Angola está a viver uma transição política de uma liderança de 38 anos para uma normalidade democrática de um ciclo regular de eleições. Embora o partido no poder seja o mesmo a 46 anos, mas já houve três lideranças em Angola, a última antes da actual, permaneceu aproximadamente quatro décadas num regime de poder quase absoluto. Hoje assiste-se o fim deste modelo de governação e gestão com uma pressão política e social sem precedentes na história de Angola.
2. Acha que ainda não entramos no ciclo democrático ?
LP- Repare que o Presidente José Eduardo dos Santos só foi eleito uma vez em 2012. Após cerca de 33 anos de poder ( 1979-2022) treze dos quais em regime de partido único e num clima de conflito armado. Felizmente alcançou-se a paz e iniciou -se um processo de reconciliação e reconstrução nacional. É evidente que não foi um processo pacífico, nem linear, por isso, assistiu -se a avanços e recuos numa dinâmica própria de processos complexos como o que vivemos.
3. Acha que o processo de reconciliação nacional e de reconstrução nacional sofreram alterações com a nova liderança no País?
LP- Sim, a liderança do Presidente José Eduardo dos Santos assentava numa base histórica que tende a desaparecer. O Presidente João Lourenço, para além do seu estilo próprio, inaugurou uma fase em que colocou na agenda política outros desafios, como o combate à corrupção!
Isso fez toda a diferença. Ainda é cedo para avaliar o mérito e os resultados da mesma, mas é fácil constatar que o rumo que o país está a seguir é diferente.
4. Acha que Angola já está no rumo da democratização e do desenvolvimento económico?
LP- Ainda estamos no dealbar deste dois processos da construção do nosso estado nação . Angola define -se constitucionalmente como um Estado democrático e de Direito mas devidos as vicissitudes vividas ainda está por concretizar muito dos seus postulados. É verdade que ainda estamos distantes do grau de democratização desejável ou do desenvolvimento económico e social que gostaríamos, porém para lá caminhamos, embora não de forma linear nem progressiva. Temos assistidos avanços e recuos. Países como os EUA levaram mais de dois séculos para ter uma democracia plena, sem discriminar de raça ou de género. A Europa civilizada entrou numa Grande Guerra a cerca de 80 anos e está em plena democratização e desenvolvimento comunitário a cerca de 50 anos. Por isso, os processos de democratização e de desenvolvimento sócio-económico não são lineares nem tão céleres como desejamos. Sem querer justificar os erros da democratização e desenvolvimento do nosso pais, ainda estamos dentro do tempo universal de os atingirmos.
5. Sendo um jurista ligado a área de Direito Administrativo, qual a sua análise sobre a actual organização administrativa Angola?
LP – Angola encontra -se num processo de Reforma Administrativa “crónica e permanente”. Há vários anos que está em curso a “ Reforma da Justiça e do Direito “ onde surgiu o novo Código Penal e o Código de Processo Penal, bem como de alguma legislação nova substantiva e adjectiva na área da justiça.. Quanto à organização administrativa propriamente dita, espera-se a aprovação de um novo Código de Procedimento Administrativo e o Código de Processo Administrativo que vão balizar a relação entre a Administração Pública e os particulares. Sem prejuízo destes diplomas estruturais, o Executivo tem ensaiado reformas intercalares como o SIMPLIFICA, o BALCÃO ÚNICO DE ATENDIMENTO AO PÚBLICO ( BUAP), que constituem iniciativas notáveis que a seu tempo faremos a devida avaliação.
6. Acha que as reformas em curso são insuficientes?
LP – Ainda é cedo para fazer uma a avaliação das reformas em curso nos vários sectores da Administração Pública.
Ao longo do Mandato do Presidente João Lourenço, assistiu -se a importantes iniciativas a nível da macro-estrutura, a redução do Executivo com fusões e extinções de Ministérios, a separação da função de concessionária e de operadora, no sector dos recursos naturais com a criação das agências de petróleos e gás e nos diamantes, respectivamente, entre outras mudanças da abordagem do serviço público, quer na perspectiva do utente interno, como do investidor externo.
7. Ainda no campo administrativo: adiou-se, mais uma vez a implementação das Autarquias Locais. Sendo um autor conhecido de obras sobre o poder local, qual a sua opinião sobre este tema:
LP – No dia 16 de Novembro de 2018, no III Colóquio Sobre o Ensino Crítico do Direito em Angola, sobre as Autarquias, na Universidade Gregório Semedo, defendi que a implementação das autarquias locais deveria ser adiada. Num debate que está disponível no YouTube, o Professor Carlos Feijó, entendia que um eventual adiamento colocaria em causa o compromisso assumido pelo Chefe de Estado.
Como se vê, não só foi adiada , como foi feita de uma forma “improvisada” e mal conseguida.
Dias depois, expus, num artigo que está na minha página de Facebook, o nosso ponto de vista sobre a forma como devem ser implementada as Autarquias Locais e como deve ser feito um melhor enquadramento dos demais elementos do poder local.
E, em síntese, a nossa tese é a seguinte: i. Elaboração de um plano de implementação do poder local ( entende-se aqui os três elementos do poder local : as Autarquias Locais, Entidades do Poder Tradicional e as Outra Formas de Participação dos Cidadãos; ii. O Plano teria duração de 5 anos; iii. O plano contemplaria um programa de diminuição dos factores mais graves das assimetrias regionais, visando a implementação das autarquias locais; iv realização de eleições autárquicas em todas as localidades .
É evidente que o plano quinquenal passaria por acordo de regime, entre o Executivo, a oposição e a sociedade civil organizada.
Tinha sugerido, inclusive, a criação da figura do Ministro de Estado Sem Pasta, cuja finalidade seria negociar e acompanhar a implementação deste plano.
8. Tendo o Executivo seguido outro caminho, acha que teremos autarquias em breve ?
LP- O dossier das Autarquias Locais ficou “parado” na Assembleia Nacional que ainda não aprovou a lei sobre a sua implementação, onde constava a questão fraturante do gradualismo territorial. Entretanto, o Presidente João Lourenço promoveu uma revisão constitucional que eliminou o gradualismo do texto constitucional. Creio que antes das eleições gerais vai ser aprovado toda a legislação atinente as Autárquicas Locais, resta saber se teremos eleições autarquias em simultâneo com as gerais. Essa possibilidade existe, porém acho desaconselhável.
9. Mas quais os receios de realização de eleições simultâneas ( gerais e autárquicas)?
LP- Se do ponto de vista financeiro, humano, material e até organizacional, uma eventual realização de eleições gerais e autárquicas, teoricamente pode ser bem vista, porém, na vertente político correr-se sérios riscos. Não só seria difícil à população compreender os processos eleitorais em causa, feitos em simultâneo, como as suspeitas de fraude já existente, aumentaria substancialmente. Tudo isso contribuiria para agravar o complicado ambiente político que vivemos com a intolerância política a atingir níveis preocupantes.
10. Ainda na área Administrativa, como encara a iniciativa do Executivo em aumentar o número de províncias?
LP- A reorganização da nossa divisão política-administrativa é necessária, mas não é oportuna. Dividir províncias é matéria que nunca democracia consolidada a é objecto de referendo, e numa “democracia em maturação “ como a nossa deve, no mínimo, reunir consenso e constar num pacto de regime, sem prejuízo de estudos e consulta pública aprofundada. Fiquei aliviado quando ouvi, o Chefe de Estado, no discurso do Estado da Nação, dizer que o processo não tem fins eleitorais e o debate vai continuar após a eleição de 2022.
11. Nos últimos tempos temos assistido fortes críticas ao sector da justiça: qual a sua opinião do este sector?
LP- Considerado que tem havido avanços e recuos. Mas o que mais me preocupa é a falta de uma visão clara deste sector. E eu explico. O nossos sistema judicial é de matriz germano-romano, todavia onde prevalece o direito positivo e uma certa preponderância do Executivo face ao legislativo e, na vertente da justiça administrativa, vigora o privilégio de execução prévia.
Com a entrada em vigor da Constituição de 2010 (e a sua recente revisão), o nosso sistema constitucional passou a ter as linhas gerais do sistema anglo-saxónico, não tendo ainda a legislação ordinária concretizado este modelo. Há ainda a questão da justiça penal que beneficiou-se com a entrada em vigor dos novos Códigos Penal e de Processo Penal que apesar dos avanços há questões não clarificadas como o papel do juiz de instrução .
Para lá dos problemas estruturais do sector da justiça, temos a problemática questão da independência dos juízes ( ainda não alcançada) e da qualidade das decisões judiciais que está intimamente ligada a primeira questão e, de certo modo, também indexada à formação e as suas condições (de trabalho e sociais).
12. Se bem percebemos, acha que os juízes em Angola não são independentes?
LP- Para um país que vem de um período de partido único que mandava em todas as instituições do Estado, incluindo nos tribunais, para que os juizes alcancem verdadeiramente a independência face ao poder Executivo, deveria-se-á estabelecer os seguintes princípios e regras no nosso direito positivo :
a) Estabelecer o princípio de orçamentos autónomos dos órgão de soberania.
b) Princípio do auto-governo orçamental e da autonomia de definição do sistema judicial pelos juízes e estabelecer o fim da dependência do poder judicial face ao Ministério da Justiça.
c) O poder judicial deve elaborar e gerir livremente o seu orçamento: cabendo apenas a Assembleia Nacional determinar o montante geral, aprova-lo e fiscalizar a sua execução mediante análise e aprovação do seu relatório de execução.
d) Estabelecer uma clara separação entre a função judicial e a função partidária, estabelecendo um período de nojo de 5 anos entre a sua partidária e a função judicial.
5. Clarificar e dignificar o papel do Ministério Público no sistema judiciário, ponto fim a desnecessária equiparação com a função judicial, sem que isso resulte em perda de dignidade, nem de privilégios legais já adquiridos (imunidades, passaporte diplomático, etc) ou afectando as suas condições sociais legalmente estabelecidas.