Nos últimos anos, a capital angolana regista, cada vez mais, a existência de centenas de vendedores retalhistas, que operam à margem da lei, sem o pagamento de impostos ao Estado e sem as condições exigidas para conservar os medicamentos.
O negócio tornou-se a opção de centenas de famílias, que investem em pequenas farmácias, nos bairros periféricos, ou em armazéns clandestinos de fármacos, nos mercados informais.
Segundo dados da Agência Reguladora de Medicamentos e Tecnologias de Saúde (ARMED), Angola conta, actualmente, com cerca de 4 mil farmácias, 90 por cento das quais na cidade de Luanda, para um universo de mais de 30 milhões de habitantes.
De acordo com dados oficiais, publicados em 2019, pelo menos trezentas e 53 farmácias ilegais ou irregulares operavam em todo o país, sem qualquer tipo de licença, enquanto outras prestavam o serviço de venda de medicamentos com licenças falsas.
Conforme os relatórios produzidos, até 2019, apenas duas mil duzentas e 30 estavam a trabalhar legalmente, números que preocupam, sobremaneira, as autoridades sanitárias.
Até 2020, estavam licenciadas, pelo Ministério da Saúde, duzentas e 50 entidades grossistas (importadoras e distribuidoras) e duzentas retalhistas (farmácias e ervanárias), assim como quatro fábricas (duas de cosméticos e duas de empacotamento de dispositivos médicos).
Apesar de a abertura de farmácias, postos de medicamentos ou venda de materiais de carácter sanitário requerer autorização das autoridades sanitárias, a realidade demonstra que, em Angola, muitos cidadãos ainda conseguem “driblar a Lei” e fazer a venda clandestina.
Trata-se, essencialmente, de farmácias de 3ª classe, que se dedicam à venda exclusiva de medicamentos essenciais, produtos de uso externo e material gastável, em zonas rurais.
São estabelecimentos comerciais erguidos em espaços estratégicos no interior dos bairros periféricos, que operam próximos uns dos outros, e disputam, diariamente, a mesma clientela.
Os mesmos vendem de tudo um pouco, desde comprimidos a xaropes para o tratamento de diferentes enfermidades, muitos deles de origem duvidosa, mas bastante procurados.
Há quem diga, inclusive, que só nesses espaços comerciais é possível encontrar, muitas vezes, medicamentos prescritos por médicos de unidades sanitárias de referência a baixo preço, sendo, por isso, uma das razões de se tornarem “concorridas”.
De referir, que, ao abrigo do Decreto Presidencial nº 191/10, de 1 de Setembro (sobre o Regulamento do Exercício da Actividade Farmacêutica), a instalação de unidades farmacêuticas em Angola fica sujeita ao tratamento de vários documentos.
Constam do leque de documentos exigidos pelo Estado, identidade e certificado de registo criminal dos sócios que representam a empresa, certidão da escritura pública de constituição da sociedade, quando for o caso, certidão do registo comercial da matrícula definitiva, alvará comercial com as subclasses correspondentes e registo estatístico.
Além desses, o interessado deve ter termo de responsabilidade do director técnico acompanhado da cópia de identidade deste e dos demais técnicos, seus documentos profissionais, contratos de trabalho e duas fotografias tipo passe de cada um, fotocópia do cartão de contribuinte (NIF) da empresa, planta, cortes, rede de esgoto, declaração do técnico que faz o projecto, memória descritiva.
Exige-se, ainda, croquis de localização da farmácia, certificado de habitabilidade, sendo que, antes da abertura e funcionamento de uma farmácia em Angola, é necessário realizar uma vistoria para se atestar a conformidade das infra-estruturas às exigências legais sobre a funcionalidade, segurança e condições de saúde pública das instalações, conforme o Decreto nº 29/2000, de 2 de Junho.
A vistoria é realizada por uma comissão composta por representantes dos ministérios da Saúde e do Comércio, dos Serviços de Bombeiros e da administração local.
Apesar de toda essa exigência, o surgimento de farmácias ilegais e a prática da venda de fármacos em mercados informais continua a ser o “pão de cada dia”, sobretudo em Luanda.
Diante disso, a Autoridade Nacional de Inspecção Económica e Segurança Alimentar (ANIESA) informou, recentemente, que inspeccionou, em 2022, pelo menos 279 estabelecimentos do sector da Saúde, entre farmácias e depósitos de medicamentos.
Entretanto, aquele órgão fiscalizador não avançou quantos estabelecimentos de venda de medicamentos terão sido punidos por eventuais inconformidades com a Lei.
O problema, na verdade, já se arrasta há 12 anos, altura em que o Governo Provincial de Luanda proibiu a venda ilegal de medicamentos, de produtos farmacêuticos e equipamentos hospitalares em locais impróprios e inadequados.
Mercado dos Kwanzas lidera vendas
Diariamente, várias quantidades de medicamentos, expostos ao sol e sem a devida inspecção de qualidade, feita por autoridades competentes, chegam aos mercados informais.
Nos Kwanzas e no Kikolo, por exemplo, centenas de cidadãos dedicam-se à prática da venda ilegal de fármacos, armazenados em quintais, alguns deles com datas de expiração vencidas.
Ouvido pela ANGOP, o vendedor “Adilson” disse que vende medicamentos nos Kwanzas desde 2010, mas nunca pagou impostos ao Estado pelo exercício dessa actividade comercial.
Segundo o mesmo, os produtos são comprados em depósitos de medicamentos, onde todos os vendedores do mercado se “socorrem”, usando licenças de farmácias legalizadas.
Os Kwanzas, localizado no município do Cazenga, é considerado um dos maiores e mais concorridos mercados de venda ilegal de medicamentos do país, devido aos baixos preços.
Por sua vez, no mercado do Kikolo, município de Cacuaco, os vendedores apresentam-se mais ousados, pondo os medicamentos à disposição dos clientes em panos, que facilmente se desdobram quando estiverem diante da presença das autoridades.
Os produtos vendidos vão desde comprimidos para tratamentos de doenças de grande abrangência, como malária, hipertensão, analgésicos, respiratórias, até aos tradicionais.
Conforme os vendedores, se apanhados pelas autoridades do Estado, arriscam-se a levar uma multa que pode chegar até aos 400 mil kwanzas, além da apreensão dos produtos.
Indústria farmacêutica
É caso para dizer que o investimento no negócio farmacêutico tem sido, nos últimos anos, bastante comum em Angola, onde se registam, ainda, dificuldades extremas para a produção de fármacos, sendo a importação a alternativa principal para atender à demanda.
Aliás, dados disponíveis indicam que a indústria farmacêutica mundial vive, actualmente, um dos seus melhores momentos, em termos de arrecadação de receitas, realidade que se deve, fundamentalmente, à premente necessidade de produção de vacinas.
Segundo o portal alemão “statistas”, as vendas mundiais de medicamentos aumentaram de 390 bilhões de dólares norte-americanos para 1,27 trilhão, no período de 2001 a 2020.
No caso particular de Angola, regista-se um ligeiro crescimento do mercado farmacêutico, mas ainda existem grandes contrariedades e desafios prementes, desde a falta de uma indústria produtora de medicamentos até à proliferação ilegal de farmácias.
De acordo com levantamentos feitos, o país ainda importa quase a totalidade dos seus medicamentos, apesar do surgimento, tímido, da medicina tradicional.
A produção de medicamentos em Angola está paralisada desde 2004, sendo que, actualmente, apenas duas fábricas de cosméticos e duas de empacotamento de dispositivos médicos estão licenciadas pelo Ministério da Saúde, segundo dados publicados em Outubro de 2020.
Além da falta de produção de medicamentos, há um reduzido número de quadros formados no ramo, e grandes quantidades de medicamentos vendidos em mercados informais.
Angola conta com aproximadamente mil 200 farmacêuticos credenciados, distribuídos pelas 18 províncias. A maioria dos profissionais trabalha em Luanda, onde opera em farmácias privadas, comunitárias, hospitalares e em depósitos de medicamentos.
No entender do Bastonário da Ordem dos Farmacêuticos de Angola (OFA), Santos Nicolau, os desafios que se impõe a Angola, nesse domínio, são imensos, particularmente a questão relacionada com a venda de medicamentos em lugares impróprios.
Do seu ponto de vista, é importante que as autoridades ponham fim às farmácias ilegais e à venda ambulante, nos mercados paralelos, de medicamentos contrafeitos.
“Infelizmente, muitas pessoas compram fármacos nas ruas e acabam por levar às unidades sanitárias ou em casa, para ajudar no tratamento dos seus parentes. Isso, torna-se um problema sério para a saúde da população”, adverte o especialista.
Segundo a fonte, os medicamentos são fabricados com químicos e, se não forem bem conservados, estiverem expostos ao sol, ou diante de grandes temperaturas, podem tornar-se inadequados ao organismo e levar, inclusive, à morte.
O profissional entende ser possível superar a problemática da venda de medicamentos nos mercados paralelos, desde que se faça um trabalho árduo de fiscalização, pelo Estado.
Conforme o mesmo, apesar da existência de centenas de farmácias, a criação de uma indústria farmacêutica impõe-se em Angola, sublinhando que chegou o momento de se recuperar este desiderato e reduzir, em grande medida, a importação de medicamentos.
“Angola já produzia medicamentos nos anos 90, através da Angomédica e outros laboratórios, mas, actualmente, temos melhores condições para ter uma indústria operacional. Para isso, basta termos potenciais candidatos, com os recursos necessários para investir nesta área e aproveitar o mercado, que é virgem e promissor”, comenta.
Constituída em 2013, a Ordem dos Farmacêuticos de Angola (OFA) defende a reorganização, parcerias, emprego, combate à contrafacção e fabrico de medicamentos.
Pretende, por outro lado, reorganizar a classe, dar formação graduada e pós-graduada, manter parceria com estruturas estatais, privadas e filantrópicas, entre outras acções, assim como defende a criação de uma indústria farmacêutica.
Dada a importância do último ponto para o país, em reduzir as importações de medicamentos e passar a fabricar alguns grupos de medicamentos, o bastonário diz que tem de ser levada em conta a investigação científica, fundamental e necessária.
Para Santos Nicolau, existem no mercado de trabalho vários profissionais, técnicos médios, que não foram formados em farmácia e não são farmacêuticos.
“Os que nós controlamos apenas devem demonstrar a competência que adquiriram ao longo dos 5 anos de formação, para poderem desempenhar com zelo as actividades profissionais, garantindo que os pacientes e utentes saiam satisfeitos e com as dúvidas dirimidas”, diz.
Outra preocupação tem a ver com a formação, ressaltando que a maior parte dos quadros formados na área farmacêutica no país não dispõe das valências que deveriam ter.
Isso, fundamenta, deve-se, essencialmente, à falta de uma indústria farmacêutica e de laboratórios, sem os quais os estudantes não têm a prática necessária e requerida.
Farmacêuticos ressaltam desempenho
Apesar desse diagnóstico, a farmacêutica Emiliene Santos considera o técnico farmacêutico de extrema importância na vida dos utentes, visto que não dispensam apenas medicamentos, mas ajudam no processo de acompanhamento da medicação.
Quanto à realidade do sector farmacêutico em Angola, concorda que há imensas lacunas, destacando o elevado índice de doenças e as dificuldades de importação de fármacos.
“O país ainda não tem uma fábrica consistente para produção de medicamentos, e com isso surge a grande dificuldade para se responder à demanda das receitas dos utentes”, lamenta.
Afirma, por outro lado, que muitos técnicos do sector desconhecem a grande diversidade de medicamentos existentes, e não conseguem interagir e deixar o paciente seguro.
Para a profissional, outro constrangimento tem a ver com a venda de medicamentos sem receita médica, o que leva ao aumento de casos de automedicação.
Por sua vez, a farmacêutica Agnela Soares diz que se sente feliz e realizada com a profissão, e consegue, através da sua área de actuação, manter contacto directo com a população, direccionar e ajudar a resolver as preocupações dos doentes.
Conforme a profissional, o farmacêutico assume um papel responsável perante a sociedade na busca pela cura e qualidade de vida do utente.
Cada vez mais, referiu, o mercado abre-se para esses profissionais, com o avanço da tecnologia e das pesquisas nas indústrias farmacêuticas”, remata a farmacêutica.
A problemática da melhoria do sector farmacêutico está na agenda do Executivo, que pretende, a médio ou longo prazos, devolver ao país a capacidade de produção de fármacos.
A intenção já foi apresentada em 2021, pelo Presidente João Lourenço, que disse pretender instalar uma indústria para a produção de medicamentos, vacinas e material gastável.
Entretanto, o Chefe de Estado deixou claro, na altura, que, ao contrário do sucedido com a Angomédica, antiga fábrica de medicamentos, desta vez a indústria farmacêutica terá de começar do zero, ou seja, exclusivamente com fundos do sector privado.
Para tal, disse que o Executivo vai procurar atrair investidores privados, entre nacionais e estrangeiros, no sentido de investirem na produção de fármacos e outros produtos clínicos para ajudarem a assistir, de forma conveniente, os serviços de saúde.
Enquanto se aguarda pela materialização desse propósito, impõe-se a adopção de novas medidas para acabar com as farmácias ilegais e a venda clandestina de medicamentos, que pode perigar a vida de milhares de pacientes, dada a falta de fiabilidade dos fármacos.
Sendo certo que o número de farmácias ainda está aquém das necessidades do país, importa que o fenómeno da proliferação de farmácias ilegais e da venda ambulante de medicamentos continue a constar das prioridades do Executivo angolano.
Afinal, a saúde e a vida dos cidadãos estão acima de quaisquer outros interesses.
Por Eurídice Vaz da Conceição