No dia em que o Presidente da República sugeriu a um grupo de jornalistas estrangeiros que Portugal devia avançar com reparações às suas antigas colónias, nos corredores de São Petersburgo detalhavam-se os últimos pormenores de cooperação militar entre Moscovo e a ex-colónia portuguesa de São Tomé e Príncipe. Dias depois, o acordo entrou em vigor e os especialistas acusam a diplomacia portuguesa de “ineficácia” e alertam que Moscovo se prepara para explorar outros países de língua portuguesa.
“Não é uma surpresa. Este acordo mostra a ineficácia da diplomacia portuguesa. Isto vai fragilizar ainda mais a relação entre Portugal e São Tomé a Rússia vai beneficiar disto. Mas não deve ficar por aqui. As ex-colónias portuguesas são o próximo alvo da diplomacia Rússia”, afirma o professor Tiago André Lopes, especialista em Relações Internacionais.
O acordo de natureza militar, assinado no dia 24 de abril e implementado no dia 5 de maio, vai estender-se a várias áreas. O objetivo, segundo o comunicado publicado pela Rússia, passa por intensificar o treino militar conjunto, mas também o recrutamento de forças armadas, bem como a utilização de armas e equipamento militar. No entanto, o documento também prevê a presença de aviões e navios de guerra russos no arquipélago.
O documento, celebrado “por um período de tempo indefinido”, vai garantir também a São Tomé e Príncipe receber apoio no campo da educação e da formação de pessoal, bem como apoio logístico e partilhar informações “no âmbito do combate à ideologia extremista”. De acordo com a agência noticiosa Sputnik, que cita o documento publicado no portal oficial russo, este acordo “contribui para fortalecer a paz e a estabilidade internacional”.
“Portugal vai condenar, vai preocupar-se e querer mostrar que não faz sentido que um país lusófono tenha uma cooperação militar que São Tomé tenha uma relação privilegiada com um país que é um inimigo declarado da Europa. Mas Portugal vai estar muito só nessas queixas”, admite o professor José Filipe Pinto, especialista em Relações Internacionais.
A CNN Portugal contactou o Ministério dos Negócios Estrangeiros no sentido de saber a posição portuguesa sobre este acordo, mas não obteve qualquer resposta.
As ligações entre os dois países não são de hoje. Tal como muitas outras antigas colónias europeias em África, São Tomé e Príncipe contou com o apoio de Moscovo durante o período da guerra colonial, com a antiga União Soviética a apoiar diversos movimentos de independência africanos. Durante esse período, o arquipélago recebeu diversos conselheiros militares russos, que ajudaram a formar e estruturar as forças armadas do país.
Essa influência ainda se faz sentir. Apesar de ser uma das forças armadas mais pequenas do continente, o armamento utilizado pelo exército são-tomense é quase todo de fabrico soviético. Desde o ano da independência, em 1976, até ao final da década de 80, São Tomé recebia com frequência navios militares soviéticos e tinha instalados três radares de fiscalização marítima e aérea russa no arquipélago.
Em 2023, o governo português fez um esforço para contrariar essa influência ao oferecer material militar ao arquipélago, com o ministro da Defesa de São Tomé a descrever Portugal como “um dos principais parceiros” do país no campo da segurança. O material em causa eram cerca de dois mil quilos de artigos de fardamento, correspondentes a cerca de 1.500 peças de casacos de camuflado, calças e barretes de campanha. Mas a cooperação militar entre Portugal e a sua antiga colónia remontam a 1988, quando foi assinado o acordo bilateral de cooperação técnica no domínio militar.
“Portugal tem de olhar para estes países de forma mais criteriosa. São Tomé está à procura de um país que lhe forneça armamento, mas estão a bater à porta errada. A Rússia, neste momento, tem muitos interesses em África, mas não tem capacidade de fornecer grandes capacidades militares porque está focada na Ucrânia”, explica o major-general Isidro de Morais Pereira.
Mas a influência russa em todo o continente não para de crescer. Desde que começou a guerra na Ucrânia, vários países francófonos, com a propaganda russa a virar a região do Sahel do avesso e a expulsar as forças francesas que ajudavam no combate ao terrorismo islâmico. Mali, Níger e Burkina Faso, governados por juntas militares, estão cada vez mais afastados da sua antiga potência colonial e a Rússia não perdeu tempo para ocupar esse vazio ao enviar mercenários para auxiliar estes países.
Em vários países africanos, a Rússia oferece um “pacote de sobrevivência” aos regimes políticos locais a troco de acesso a recursos naturais estratégicos. De acordo com a BBC, que teve acesso a documentos do governo russo, Moscovo chegou mesmo a conseguir alterar as leis em vários países da África Ocidental para excluir empresas ocidentais de operarem em regiões de importância estratégica para a Rússia.
A potencial exploração de recursos naturais torna o continente africano cada vez mais desejado pelo Kremlin, o que coloca as antigas colónias portuguesas em África na mira de Moscovo. Nos últimos anos, uma parte significativa do continente tem sido fustigada pelo terrorismo islâmico e muitos Estados africanos estão dispostos a soluções cada vez menos ortodoxas para pôr um fim ao problema e a Rússia de Vladimir Putin tem a ferramenta certa: mercenários.
“É possível que o Kremlin queira expandir a sua influência em Moçambique. O país tem sérios problemas no Norte, na região de Cabo Delgado, e a Rússia pode prestar auxílio nesse sentido. Têm grupos de mercenários muito capazes de ajudar e Portugal não é capaz de ajudar de forma semelhante”, destaca Tiago André Lopes.
O professor universitário realça também a política diplomática do Kremlin durante a covid-19 em relação a África. Durante o início da campanha de vacinação, a Rússia de Vladimir Putin disponibilizou milhões de vacinas Sputnik para o continente muitos meses antes de o Ocidente seguir o mesmo caminho. Tiago André Lopes considera mesmo que este caso deixa a nu a “ineficácia” da diplomacia portuguesa e acrescenta que o Ministério dos Negócios Estrangeiros não terá “coragem” para condenar esta decisão formalmente.
“Há claramente um corte cada vez maior com Portugal”, defende, sublinhando que Portugal utiliza a Comunidade dos Países da Língua Portuguesa como “arma diplomática”, apesar de a instituição estar já bastante fragilizada desde 2015, quando a Guiné Equatorial entrou no grupo de países.
“Este acordo pode colocar em causa a CPLP. O Governo português tem de tomar decisões sérias e pensar com o que está a fazer. Qualquer cooperação com a Rússia não pode ser bem vista. A relação privilegiada com a Rússia com estes países vai quebrar o espírito de comunidade dentro da CPLP”, defende Isidro de Morais Pereira.
Por João Guerreiro Rodrigues