Para sociologia francesa dos anos 1970, escola seria instrumento de propagação de desigualdades sociais. Pessoalmente, acredito que a escola é e pode muito mais que isso, opina Lucas Rafael Almeida Agostinho.
Recentemente, deparei-me com a seguinte frase: “quando se nasce pobre, ser estudioso é a maior rebeldia contra o sistema”, li uma primeira vez despretensiosamente, concordei e segui a vida corrida de um professor em formação. No entanto, a frase continuava a me rondar em pensamentos, perturbava-me o inconsciente na compreensão se, de fato, a educação, especificamente a escolar, é mesmo um ato de rebeldia.
Ora, se nos apoiarmos na sociologia da educação francesa da década de 1970, logo responderíamos que a escola é antes um instrumento que reforça e propaga as desigualdades sociais externas ao ambiente escolar, de modo que estaria destinada apenas a manter os indivíduos em suas classes sociais de origem, tendo pouca ou nenhuma possibilidade de alteração da ordem. Sendo assim, não poderia ser um ato de rebeldia contra o sistema. No entanto, diante desta desilusão em relação a uma escola desigual e massificadora, gosto de recordar a frase do grande literato brasileiro Ariano Suassuna: “considero os otimistas ingênuos e os pessimistas amargos. Então eu me considero um realista esperançoso”.
Pessoalmente, acredito que a escola é e pode mais, ela não é só um espaço de reprodução. Por vezes, a instituição de ensino é a única oportunidade de um aluno ter contato com a leitura, com a escrita e com toda carga cultural que se oferece aos educandos dentro do ambiente escolar, deste modo é inegável que a escola cumpre um papel social importante.
Ademais, ao refletir sobre educação, gosto da perspectiva de que a escola não se configura somente como um processo de massificação das desigualdades, pois é também um espaço de singularidade e de transformação social. Sob esta perspectiva, surge uma compreensão realista do espaço escolar por meio da esperança da possibilidade de sucesso educacional, ainda que individual mediante os antagonismos de acesso cultural e educacional. Portanto, nesta breve coluna, a escola é entendida não só como um fenômeno de massas, mas também como resultado da subjetividade e da singularidade dos educandos em relação ao espaço escolar, isto é, da relação individual que constroem com o saber (BAUTIER, E.; CHARLOT, B. ROCHEX, J. École et savoir dans les banlieues et ailleurs. Paris: Armand Colin, 1992).
Experiências que moldam o futuro
Isto posto, gostaria de retomar a frase para discuti-la em uma perspectiva pessoal. Nasci e sou pobre, e a educação (instrução escolar) não só fez parte de quase a integralidade da minha vida, como também me proporcionou experiências e possibilidades ímpares. Devido a isso, até poderia afirmar que fui rebelde contra o sistema por meio da educação, mas não é através desta perspectiva que quero tratar, fujo da lógica meritocrática. Também não gostaria de reduzir a rememoração da minha vivência escolar a mera afetividade, mas, sim, retomo, de forma distanciada, os acontecimentos referentes a este período para analisar e relatar como as experiências escolares moldaram minhas decisões pessoais e profissionais, principalmente a de ser professor.
Recentemente, por um projeto da universidade (PIBID-USP), retornei a uma sala do ensino fundamental (9° ano) e encontrei muitos “Lucas” espalhados, ansiosos por questionar tudo e todos, falantes e hiperativos, fenótipo do “aluno-problema”. Porém, com a abertura do espaço de fala na sala de aula, esses mesmos alunos identificaram a escola e a disciplina escolar como parecidas a de um regime prisional, de modo que pude entender que, mais do que entraves a uma educação hierárquica e verticalizada, são alunos pensantes, reflexivos e politizados à maneira deles. Cabe ao educador explorar esse espaço.
Relacionando esta experiência com a minha memória enquanto discente na idade desses alunos (14 anos), lembro-me de um projeto parecido de que fiz parte como educando. Sob o pretexto de cumprir estágios curriculares do curso de Letras (UNESP), João Pedro ocupou as manhãs de sábado da escola em que eu estudava com uma sequência didática em que propunha discussão de temas político-sociais do cotidiano escolar e, na sequência, sugeria a escrita de uma redação por parte dos alunos, de modo a incentivar a criticidade e a politização por meio da discussão em sala de aula. É certo de que a compreensão da experiência como uma prática docente politizada é posterior, uma vez que foi ressignificada pela minha subsequente formação cultural e política. No entanto, como acredito que nem tudo é produto do consciente, identifico este projeto como o meu despertar para a importância da educação na transformação da minha realidade social, foram nessas aulas que pude expressar as minhas opiniões à época e entender a importância da educação na constituição sociocultural do meu “eu”, de modo a iniciar uma relação com o saber; ou melhor, em termos freireanos, começar o meu devenir.
No ano seguinte, migrei para uma escola técnica sob o intuito de melhoria na qualidade do ensino, eis a primeira vez que ouvi a palavra “USP”. Desejava ser professor, passei no vestibular, acessei horizontes inimagináveis àquele Lucas de 14 anos. Frustrei-me quando percebi que o espaço universitário é, por muitas vezes, excludente para quem é pobre e constantemente privado dos acessos socioculturais.
Em meio a frustração, tento resistir à desesperança de acreditar que sou caso isolado de sucesso escolar, como também não quero entender a escola somente como um processo de massificação das desigualdades sociais. Sendo assim, acredito que a educação é, e só pode ser, uma rebeldia contra o sistema quando produto de uma politização do espaço, do acesso e do ensino escolar. Não posso falar em liberdade por meio da educação enquanto presencio alunos que julgam suas carteiras como celas de uma prisão, impedidos e impossibilitados de construir uma relação com o saber.
Por Lucas Rafael Almeida Agostinho