Terminada a primeira fase do julgamento do chamado caso “dívidas ocultas”, em Moçambique, marcada por contradições entre os altos funcionários da secreta, avança-se agora para a segunda, em que se esperam informações de qualidade, sobretudo quando for ouvido o antigo Presidente da República, Armando Guebuza, que é, politicamente, o último responsável por todo este processo.
Um dos aspectos marcantes desta primeira fase, em que foram ouvidos os 19 réus do processo, foi o nível de desinteligências e contradições que emergiram em pleno tribunal , entre oficiais superiores dos Serviços de Informação e Segurança do Estado (SISE).
“É um nível realmente assustador, sobretudo porque o director-geral do SISE, enquanto era interrogado, mostrou, ainda que dissimulado, um desconhecimento, quase total, dos factos mais importantes que constam dos autos, sobre o que ocorreu na sua direcção”, afirma o jurista Tomás Vieira Mário.
Ele destaca que Gregório Leão remeteu tudo aos seus subordinados, nomeadamente, ao director da Inteligência Económica, António do Rosário, mas quando chegou a vez deste, este também desmentiu informações prestadas por um outro oficial, por exemplo, sobre quem liderou a constituição da empresa ProIndicus e das outras que se seguiram.
Estratégia dos réus
“Estas diferenças e desinteligências entre os oficiais do SISE”, sublinha aquele jurista, “das duas uma: ou é uma estratégia para confundir o tribunal ou, provavelmente, dentro destes serviços, naquela altura havia competição entre os seus funcionários, instigados pela procura de renda e de benefícios pessoais”.
Vieira Mário anota que “isto nos dá uma imagem muito negativa de um Serviço tão estratégico como é este, o que, por sua vez, pode explicar alguma facilidade com que o negociador-chefe do grupo Privinvest, Jean Boustani, terá passeado a sua classe, subornando toda a gente e alcançando os seus intentos”.
Na sua opinião, na segunda fase deste julgamento, esperam-se mais informações de qualidade, nomeadamente, quando intervir o antigo Presidente da República, Armando Guebuza.
“Penso que esse será o momento mais importante, para ouvir daquele que é, politicamente, o último responsável por todo o processo, porque na qualidade de comandante em chefe das forças de defesa e segurança, é ele que responde por todas as decisões que foram tomadas”, destaca aquele jurista.
Para o professor universitário radicado na África do Sul, mas conhecedor da realidade moçambicana, Andre Thomasausen, a primeira fase deste processo confirma o facto de que este julgamento não vai contribuir para se descobrir onde estão os mais de 700 milhões de euros, alegadamente, desviados no âmbito das dividas ocultas, porque “o tribunal está a ocupar-se apenas de pequenos desvios”.
“Enquanto não houver esse esclarecimento, também não pode haver normalidade na relação de Moçambique com o grande mundo financeiro, tanto é que o Fundo Monetário Internacional (FMI), acaba de rejeitar um pedido moçambicano para mais apoio financeiro”, refere aquele académico.
O juiz e o apelo à confiança na justiça
Em relação ao anúncio feito pelo juiz de que não há indícios de que o Presidente Guebuza e o actual Chefe de Estado, Filipe Nyusi, tenham recebido dinheiro das dívidas ocultas, Andre Thomasausen diz que Efigénio Baptista “não é imparcial, porque fez tudo por tudo para impedir os réus de mencionarem os nomes daqueles que foram os autores deste crime”.
Contudo, para o jurista e pesquisador do Centro de Integridade Pública (CIP), Baltazar Fael, é necessário começar a confiar na justiça moçambicana, “porque se foi possível levar este caso a julgamento, é porque, de alguma forma, o poder judicial assumiu aquilo que é a sua postura e competências”.
O caso das “dívidas ocultas” foi despoletado em 2015 quando o ministro das Finanças Adriano Maleiane admitiu, durante a reunião de Primavera em Washington, que 2, mil milhões de dólares de um projecto para a protecção da costa marítima de Moçambique não entraram nos cofres nem na contabilidade do Estado.
Em Moçambique, a Procuradoria-Geral da República (PGR) levou 19 arguidos ao tribunal, no julgamento que decorrer desde 23 de Agosto, abriu um processo contra o então ministro das Finanças, Manuel Chang, entretanto detido na África do Sul a pedido da justiça americana e que aguarda a sua extradição para Moçambique ou para os Estados Unidos e três antigos directores do banco Credit Suisse, em Londres, também respondem à justiça, bem como o negociador da Privinvest, o libanês Jean Bustani, contra quem há um mandado de captura internacional da PGR.