Chloé e Isaac Lopes Gomes são dois irmãos franceses, com origens cabo-verdianas, que denunciaram o racismo no ballet. Chloé fê-lo na prestigiada companhia Staastballet de Berlim, Isaac fê-lo no ballet da Ópera de Paris. Os dois foram os precursores de um #metoo no mundo da dança clássica e a sua luta começa a dar frutos.
Chegam luminosos e a sorrir. Falam de lutas e projectos, sonhos e saudades, França e Cabo Verde, numa esplanada junto ao Palais Garnier – Ópera de Paris. O sorriso nunca se apaga mesmo quando o semblante se crispa para falar de racismo.
Chloé, de 31 anos, e Isaac, de 26, são dois irmãos prodígio no mundo da dança clássica e deram os primeiros passos para eliminar a discriminação racial no ballet. Têm um apelido lusófono, Lopes Gomes, herdado da família paterna, mas nasceram em França e lamentam não falar português, ainda que esperem vir a aprender.
Chloé começou a dança clássica ainda menina e aos oito anos entrou no Conservatório de Nice. Depois foi para a Escola Nacional Superior de Dança de Marselha e, aos 14 anos, entrou para o célebre Ballet Bolshoi de Moscovo, onde ficou quatro anos, que descreve como os melhores da sua vida. Em 2018, integrou o prestigiado Staatsballett de Berlim e foi a primeira pessoa negra a entrar na companhia.
Isaac chegou a fazer parte da equipa júnior do Olympique de Marselha, mas aos seis anos trocou o futebol pela dança e entrou na Escola de Dança de Marselha. Aos 11, foi para a Escola da Ópera de Paris e aí fez a sua formação, fazendo hoje parte do Ballet da Ópera de Paris. É “uma das cinco pessoas de cor numa companhia com 154 bailarinos”.
Em 2018, ambos foram os precursores de um #MeToo contra o racismo no universo da dança clássica. A história de Chloé correu jornais de todo o mundo. Em causa, a forma como foi tratada no Staatsballett de Berlim, onde foi constantemente alvo de comentários e piadas racistas da parte da sua professora de ballet que a chegou mesmo a obrigar a usar pó branco para clarear a pele.
“Em 2018, entrei no Staatsballett de Berlim. Eu era a única pessoa de cor em 98 bailarinos. Uns jornalistas do Berliner Zeitung vieram fazer uma reportagem sobre O Lago dos Cisnes, viram-me e contaram-me que eu era a primeira rapariga de cor a entrar em 2018 e eu fiquei surpreendida, mas não queria que falassem da minha cor de pele, que fizessem uma reportagem só por causa da minha cor.
Eu estava sob a supervisão de uma professora de ballet que vinha da Alemanha de Leste e que nunca teve pessoas de cor na sua companhia e para ela uma rapariga negra não tinha lugar num corpo de ballet branco porque quebrava a homogeneidade da companhia. Ela foi contra a minha contratação e dizia-me várias vezes que aquele não era o meu lugar. Havia piadas e comentários racistas diante de todos. Toda a gente sabia.”
Chloé Lopes Gomes decidiu, então, denunciar o caso: “Inicialmente, ao fim de dois meses, falei com a direcção que ficou chocada, mas o director da altura disse-me que não podia fazer algo contra ela porque estava protegida por um contrato sem termo, ou seja, não podia ser despedida. Tentei denunciar o seu comportamento no ministério da Cultura, disseram-me que iam ser tomadas medidas, que ela ia ser suspensa e que ia fazer um workshop para a educar, mas nada foi feito… Como se fosse possível educar uma pessoa contra o racismo aos 50 anos. Mas nada foi feito e, por isso, fui falar com a imprensa.”
Em 2020, alegadamente devido às restrições impostas pela pandemia de covid-19, Chloé foi dispensada e aí decidiu falar aos jornais e ameaçou ir a tribunal. Oito meses depois, o Staatsballett e a bailarina chegaram a acordo, o contrato foi renovado e a companhia deu-lhe uma compensação financeira. Uma vitória que não a impediu de deixar o Staatsballett já que a professora continua a exercer as suas funções. Agora, Chloé está a escrever um livro sobre o mundo da dança e promete não se calar porque vale a pena.
“Em Berlim, ganhei o meu processo, foi importante, mas não podia ficar e continuar a trabalhar com ela. Preferi partir. Lutei pelo que achava justo e para eles não mudou nada porque agora não há nenhuma pessoa de cor (porque a única pessoa de cor era eu e fui embora). Não sei se melhorámos as condições das pessoas de cor na dança, mas sinto que os bailarinos não se deixam tanto abusar, se há maus tratos e racismo eles vão falar logo à direcção, enquanto antigamente as pessoas tinham imenso medo de falar”, conta.
Questionados sobre se foram os precursores de um #MeToo na dança, Isaac responde: “Era preciso que alguém o fizesse, era bom que o tivessem feito antes de nós, mas coube-nos a nós fazer o trabalho, também para as próximas gerações, não apenas para nós.”
Chloé acrescenta: “A arte sempre soube representar a evolução e os costumes da sociedade e a sociedade hoje mudou imenso, vivemos numa sociedade multicultural que o vai ser ainda mais daqui a uns anos. A arte, nomeadamente a dança clássica, deve representar cada um de nós, por isso tem de ser mais mestiçada.”
A dança está-lhes no sangue e a luta também. Em Outubro de 2018, Isaac lançou um manifesto pela diversidade no Ballet da Ópera de Paris, pedindo coisas como maquilhagem e produtos de cabelo adaptados ao tom de pele de todos.
“Foi um pouco a mesma problemática que a minha irmã Chloé. Somos muito poucas pessoas de cor na Ópera, somos cinco em 154 bailarinos, somos mestiços. Havia coisas que não estavam bem na Ópera. Escrevemos o manifesto para denunciar aquilo que nos fazia falta enquanto bailarinos de cor na Ópera, por exemplo, a maquilhagem. Não havia maquilhagem adaptada ao nosso tom de pele e tínhamos de fazer misturas, juntar branco com preto muito escuro, e no fim ficávamos cinzentos. Os penteados, não havia cremes, eu não posso pôr lacas e géis, coisas para os cabelos lisos, nada adaptados aos cabelos crespos, e os cabeleireiros não têm formação para os nossos cabelos. A cor dos collants para as mulheres eram cor de pele mas para mulheres brancas. Por isso, fizemos este manifesto para denunciar e para que eles reagissem e se adaptassem”, relembra o bailarino.
Para Isaac, o resultado foi positivo e os pedidos foram todos atendidos. Ainda assim, durante as suas lutas, além das mensagens de apoio, Chloé e Isaac receberam também muitas mensagens de ódio e racismo. Palavras que não os calaram, que mais os motivaram a falar e a incentivar outros a romperem o silêncio sobre as discriminações raciais em pleno século XXI.