Após 20 anos de progresso, em que o trabalho infantil deixou de existir para cerca de 94 milhões de crianças, a pandemia pode obrigar a que, pela primeira vez desde o ano 2000, se verifique um aumento do trabalho infantil. O alerta consta de um relatório conjunto da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). As duas organizações internacionais dizem ser essencial agir, o quanto antes, para evitar essa subida.
O alerta surge quando se assinala o Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil. A crise provocada pela pandemia global de coronavírus pode conduzir a um aumento da pobreza e, dessa forma, a um aumento do trabalho infantil. Porque em tempos de crise, o trabalho infantil é um recurso habitualmente utilizado pelas famílias.
“Sabemos que quando há aumento da pobreza por falta de emprego, de redução de salários ou de falta de protecção social, aumenta o risco que as crianças passem a fazer parte da força laboral da família, para que contribuam para a subsistência da família”, explica Thomas Wissing, chefe da Unidade de Advocacia da OIT, que se ocupa ainda da questão dos princípios e direitos fundamentais no trabalho.
Para este responsável, quem vive num país em que uma família “não tem acesso a um seguro social, de desemprego ou de saúde e enfrenta o Covid, se adoece ou se a família tem problemas de desemprego e não tem um sistema de protecção social, então as crianças correm o risco de ter de compensar a falta de recursos familiares”.
Daí que Thomas Wissing não hesite em referir que em tempos de crise, a protecção social é vital, já que fornece assistência às pessoas mais vulneráveis.
Outra questão que se levanta é a da educação. As evidências recolhidas pela OIT e pela UNICEF demonstram que o trabalho infantil aumenta à medida que as escolas fecham durante a pandemia.
Perto de mil milhões de alunos em mais de 130 países ficaram sem aulas. Mas mesmo quando as aulas recomeçam, algumas famílias podem já não ter condições económicas que permitam aos filhos regressar à escola.
“Noventa por cento das crianças estão em casa e, quando voltarem à escola, talvez não seja fácil retomá-la. Perderam meses de matéria e em alguns casos, não conseguiram acompanhar aulas á distância, porque nos sítios onde vivem nem sequer há internet em condições”. Por isso, Thomas Winning considera que “as crianças estão à deriva, sem acesso à educação. Perdem o rumo, tem dificuldades e trabalham para a família, que deles necessita para se sustentarem”.
É o momento de agir
O alerta da OIT e da UNICEF para o problema do trabalho infantil visa sobretudo que se tomem medidas a tempo de evitar uma escalada do fenómeno, porque a Organização Mundial do Trabalho considera que este é o momento de agir e integrar a questão do trabalho infantil nos modelos de recuperação económica e social. Porque “todas as políticas e recursos que se estão a desenhar deviam ter o enfoque da infância. Devia perceber-se que impacto terão essas medidas nas crianças, nos meses seguintes, para evitar que estejam excluídas da escola. Para evitar o risco de trabalho infantil e que se assegure que os seus direitos estão protegidos”.
De resto, o documento conjunto, da OIT e da UNICEF, apresenta uma série de medidas para combater a ameaça de aumento do trabalho infantil. Entre elas, protecção social mais abrangente, acesso mais facilitado ao crédito para famílias pobres, promoção do trabalho digno para as pessoas adultas, medidas para levar as crianças de volta à escola e mais recursos para as inspecções do trabalho e para a aplicação da lei.
Porque, “se actuarmos a tempo, se tomarmos medidas no campo da educação, da protecção social, do trabalho decente para os pais, quem sabe não consigamos evitar números tão catastróficos” como os registados no último estudo global, em 2017.
A frieza dos números
Na altura, o documento referia que, em África, por exemplo, “uma em cada cinco crianças trabalhava. Que na região da Ásia Central, havia 4 ou 5% de trabalho infantil. E que a nível global, 252 milhões de crianças e adolescentes trabalhavam, representando quase 10 por cento da infância mundial”, relembra Thomas Winning, que espera que estes números não se agravem.
Ao repensar o mundo pós-COVID, “tem de existir uma forma de garantir que as crianças e as suas famílias tenham as ferramentas necessárias para enfrentar situações semelhantes no futuro. E para isso, há que ter educação de qualidade, serviços de protecção social e melhores oportunidades económicas”, refere a UNICEF.
Alguns estudos mostram que um aumento de um ponto percentual na pobreza leva a um aumento de pelo menos 0,7% no trabalho infantil em certos países.
As crianças que já trabalhavam, antes da pandemia, correm o risco de trabalhar mais horas ou em piores condições.
Os grupos da população vulneráveis, como os que trabalham na economia informal e trabalhadores migrantes, são os que mais sofrerão com a recessão económica. Porque vai aumentar o desemprego, haverá impactos na saúde e nos sistemas de protecção social e uma queda nos níveis de vida.
E as desigualdades de género podem tornar-se mais agudas, com as meninas particularmente vulneráveis à exploração na agricultura e no trabalho doméstico.