Há um ano, a pandemia da Covid-19 obriga os cidadãos a novas formas de estar e, acima de tudo, a renunciar a liberdade para evitar perdas humanas. Terá a pandemia levado a que os países se tornassem menos democráticos?
“Cabo Verde, como já é do conhecimento, registou na ilha da Boavista o primeiro caso de Covid-19”, anunciava assim, a 19 de março de 2020, o ministro da Saúde de Cabo Verde, Arlindo do Rosário.
O arquipélago foi o primeiro país entre os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) a registar, há um ano, os primeiros casos da doença que veio mudar as das pessoas em todo o mundo. Pouco depois, foi a vez de Angola (a 21 de março), Moçambique (22 de março), Guiné-Bissau (25 de março) e, mais tarde, São Tomé e Príncipe (6 de abril).
Com os primeiros casos de infeção, os Estados viram-se obrigados a impor medidas restritivas – como o isolamento domiciliar e a utilização das máscaras – numa tentativa de salvar vidas. Novas regras, num “novo normal”, que em alguns países trouxe descontentamento, detenções arbitrárias e protestos tendo muitos deles resultado em mortes.
Até maio do ano passado, dois meses depois do início do estado de emergência em Angola, as forças de ordem e segurança mataram cinco pessoas, mais do que a própria Covid-19.
“Situação que está a acontecer aqui no país, os polícias estão a matar muito. É a vida de alguém, não pode”, relatava à reportagem da DW África em Angola um cidadão.
À exceção da Guiné Equatorial, Angola é atualmente o país africano de língua portuguesa pior cotado em matéria de direitos políticos e liberdades civis, de acordo com o relatório anual da Freedom House. Segundo os indicadores da ONG, é um país ‘não livre’ com uma classificação de apenas 31 pontos num total de 100.
Período atípico democraticamente
Luís Jimbo, diretor do Instituto Angolano de Sistemas Eleitorais e Democracia (IASED), considera que a pandemia contribuiu “significativamente para os baixos índices e o estagnar da democracia”.
“No antes Covid-19 em Angola houve muita expetativa de abertura democrática, mas o período Covid-19 veio trazer um impacto nas restrições dessas expetativas. Estamos de facto num período atípico democraticamente em que é difícil fazer um balanço se foi bom ou foi mau, mas no seu todo a Covid-19 teve impacto de restrição no exercício dos direitos fundamentais e da democracia, claro”, explica.
Para Jimbo, “o que se viveu neste período da pandemia [em Angola] foi um reflexo da expetativa que se ganhou de liberdade com a nova era de João Lourenço”.
“Criou grande expetativa e grande liberdade e depois houve um confinamento, houve restrições e as pessoas não cederam. Não cederam às liberdades que ganharam e estamos a assistir a essa adaptação não só dos cidadãos, mas das autoridades públicas em respeitar aqueles direitos que já foram ganhos”, acrescenta.
Democracia em declínio em Moçambique
Moçambique não ficou atrás no que toca, por exemplo, às detenções arbitrárias e medidas como o recolher obrigatório não foram consensuais.
Para Borges Nhamire, analista do Centro de Integridade Pública (CIP), “Moçambique vive um dos piores momentos em termos de democracia”, contudo não culpa a pandemia.
“A sociedade civil continua a trabalhar livremente mesmo em contexto de Covid-19, os partidos políticos continuam a realizar conferências de imprensa ou atividades juntando mais de 20 pessoas. Então não foi necessariamente a Covid-19 que trouxe as restrições às liberdades, aos direitos fundamentais que estamos a ver em Moçambique. São problemas das imperfeições da nossa democracia, mas a pandemia não foi necessariamente um grande problema dentro do contexto da nossa ‘quase democracia’”, expõe.
Comparativamente a outros países da região, Nhamire considera que os efeitos da pandemia na democracia em Moçambique “não foram graves”.
“Tivemos alguns problemas por exemplo a adoção do estado de emergência que era questionado pelos juristas no sentido de que podia estar a violar os termos da limitação das liberdades fundamentais previstas na Constituição da República, mas não foi tão gravoso.”
“Ou quando o Governo decidiu pelo recolher obrigatório, uma situação que não era vista em Moçambique talvez desde o fim da Guerra Civil. Houve alguns problemas no início, pessoas a serem detidas, levadas a pernoitar nas esquadras, em condições muito duvidosas e de violação dos direitos humanos e fundamentais dessas pessoas, mas a situação foi rapidamente resolvida”, acrescenta.
Democracia da Guiné-Bissau também ressentiu
Na Guiné-Bissau, a suspensão das aulas e o encerramento das escolas figuram entre as medidas ultimamente mais contestadas pela sociedade civil, no âmbito da pandemia.
Fodé Sanhá, presidente do Movimento da Sociedade Civil para Paz, Democracia e Desenvolvimento, não tem dúvidas: a pandemia teve impacto na democracia do país.
“De facto houve medidas que foram tomadas e que tinham que ver com salvaguardar vidas humanas tendo afetado bastante a liberdade de mobilidade e outras liberdades. Em todo o sentido, não só no aspeto democrático, mas também no aspeto económico, social e cultural, a pandemia tem penalizado”, assegura.
Cabo Verde, apesar da pandemia, não viu a democracia ser beliscada e continua a ser um exemplo nesse campo. Entre os PALOP, é – a larga distância – o que ocupa a melhor posição no ranking da Freedom House com 92 pontos em 100, sendo considerado um país livre. O arquipélago é seguido de São Tomé e Príncipe com 84 pontos.
No geral, a ano de 2020 foi 15º consecutivo de recuo dos direitos políticos e liberdades dos cidadãos a nível mundial, afetados pelas restrições impostas no contexto de combate à pandemia de Covid-19, segundo o último relatório “Liberdade no Mundo” da ONG Freedom House.