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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

Como a gravidade era explicada antes de Newton

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A história da maçã caindo sobre a cabeça do físico inglês Isaac Newton (1643-1727) pode não passar de uma lenda. Mas é consenso que a lei da gravitação universal, o princípio que explica por que as coisas caem, foi formulado por ele na obra Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, em 1687.

Obviamente, as coisas já caíam antes de Newton. Mas como será que as pessoas encaravam o fenômeno? Qual era a explicação, até o século 17, para o que hoje chamamos de gravidade?

Muito anos depois de Newton, o físico alemão Albert Einstein (1879-1955) diria que “a gravidade é a primeira coisa em que não pensamos”. Afinal, parece natural a ideia de que uma pedra arremessada caia, do mesmo jeito que uma fruta não colhida do pé, ou que um tropeço bobo seja prenúncio de um tombo.

No livro Por Que as Coisas Caem? Uma História da Gravidade, publicado pela editora Zahar em 2009, os astrônomos Alexandre Cherman e Bruno Rainho Mendonça partem da constatação de que a gravidade, sem dúvida, “é especial”.

“Se não fosse, como explicar que os dois maiores gênios das ciências, Isaac Newton e Albert Einstein, tenham se dedicado a ela? E não só isso: tenham sido alçado a essa condição genial justamente por terem vislumbrado parte de seus segredos?”, escreve Cherman.

Segundo ele, a importância da gravidade reside em dois fatores: ela é universal, “para usar uma palavra cara a Newton”, e geral, “usando um termo querido de Einstein”.

Mas como se explicava antes?

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O marco zero do conceito de gravidade pode ser atribuído a Aristóteles Getty Images

Para responder essa pergunta, é preciso voltar na história da ciência até Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.). O sábio grego é considerado um dos mais influentes pensadores da história ocidental — e muito da própria lógica do pensamento científico se deve a suas prerrogativas.

“Ele dividia um pouco os fenômenos a partir dos elementos, e entendia que havia uma tendência natural do objeto que pertencia a determinado elemento a voltar à posição desse elemento”, explica à BBC News Brasil o físico Rodrigo Panosso Macedo, pesquisador de pós-doutorado no Instituto Niels Bohr, na Universidade de Copenhagen, na Dinamarca.

“Assim, se um objeto era feito de terra, sua tendência natural seria voltar para a terra, por isso ele cairia. Já um objeto feito de ar gasoso teria a tendência natural de voltar para o ar, por isso ele subia.”

No livro em que é coautor, Bruno Rainho Mendonça volta um pouco mais no tempo e cita algumas referências à compreensão do fenômeno por parte de sábios hindus, antes mesmo de Aristóteles.

Uma representação pictórica possivelmente do século 8 a.C. indica que esses filósofos já acreditavam que a gravitação mantinha o Sistema Solar unido — e que o Sol, por ser o astro com a maior massa, deveria ocupar a posição central no modelo.

“Outro registro interessante também realizado na Índia Antiga pode ser encontrado no trabalho de um sábio hindu chamado Kanada, que viveu no século 6 a.C.”, escreve.

“Foi ele quem fundou a escola filosófica de Vaisheshika.”

Rainho Mendonça explica que Kanada associava “o peso” à queda, entendendo o primeiro como o causador do fenômeno.

“A intuição do sábio hindu estava no caminho certo, mas havia ainda um longo trajeto a ser percorrido em termos conceituais.”

O astrônomo concorda, no entanto, que o marco zero no conceito de gravidade deve ser atribuído a Aristóteles, “pois apesar de seu trabalho nessa área não representar a realidade atual, o conhecimento nele difundido perdurou por muitos séculos após sua morte”.

“Até a modernidade, com as novas pesquisas e teorias desenvolvidas na renascença […], a física aristotélica predominou em muitos centros de estudos da Antiguidade e Idade Média”, diz à BBC News Brasil o físico, filósofo e historiador José Luiz Goldfarb, professor de história da ciência na PUC-SP.

“[Ele] explicava a queda dos corpos pela ideia de que a Terra era o centro do Universo, e os corpos pesados tendiam a ocupar seu lugar natural neste centro.”

Em outras palavras, “é dizer que as coisas caem quando estão soltas, pois tendem a ocupar seu lugar natural no centro do Universo, a Terra”, analisa Goldfarb.

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Aristóteles acreditava que todos os corpos se movem em direção ao seu lugar natural Getty Images

Etimologicamente, é interessante notar que a palavra gravidade deriva do latim gravis — tem a mesma origem da palavra “grave”, portanto. Seu campo semântico vai do “pesado” ao “importante”, passando por sentidos como “poderoso”.

Segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, do filólogo e lexicógrafo Antônio Geraldo da Cunha, o termo “gravidade” já aparece a partir do século 13 — mas as variações “gravitar” e “gravitação” só surgem no século 18, indicando a repercussão da física newtoniana sobre as terminologias.

Em texto assinado por Cherman no livro Por Que as Coisas Caem?, há uma divagação sobre o termo em sânscrito para a gravidade: gurutvaakarshan.

“Repare o início da palavra: ‘guru’. É justamente o termo usado para designar os respeitados mestres espirituais e chefes religiosos do hinduísmo”, afirma.

“E, em uma corruptela, também resulta no grego ‘barus’ (pesado), origem da palavra ‘barítono’ (de voz grave)”, acrescenta o astrônomo.

Já em um capítulo escrito por Rainho Mendonça no mesmo livro, ele explica que o uso do termo em latim gravis para designar o fenômeno da gravidade tem início a partir do século 8, com traduções de tratados científicos do mundo árabe para a Europa.

“E é assim que surge o termo que é objeto de nosso estudo: gravidade”, diz o pesquisador.

“E no contexto que nos interessa, pois ao se referir a objetos de grande peso, as traduções latinas usavam a palavra cuja raiz é o adjetivo gravis, grave, que significa ‘pesado’.”

“Não é possível precisar a primeira vez que esse termo foi empregado”, observa o autor.

Mas, para ele, o surgimento das primeiras universidades europeias, onde o latim era a língua oficial, contribuiu para a disseminação da nova nomenclatura. “[… nas] universidades de Bolonha, Paris, Oxford, entre outras, que utilizaram a maioria daquelas obras [árabes] traduzidas.”

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Outras teorias surgiram nos 2000 anos que separam Aristóteles e Newton Getty Images

Embora o pensamento aristotélico tenha predominado, sobretudo no mundo ocidental, e a Idade Média tenha entrado para a história como a “era das trevas” no que tange à evolução do conhecimento, é inegável que houve avanços científicos nos 2.000 anos que separam Aristóteles e Newton.

“Hoje historiadores da ciência conseguem detectar pensadores da Antiguidade e da Idade Média que já elaboraram ideias com maior proximidade da teoria newtoniana do que a física aristotélica, ainda que oficialmente prevalecesse a teoria do filósofo grego”, afirma Goldfarb.

O livro Por Que as Coisas Caem? oferece um panorama desse cenário. Rainho Mendonça cita, por exemplo, as pesquisas do filósofo árabe Abu Yusuf al-Kindi (801-873).

“Em seu tratado Sobre Raios (Solares), ele declarou que os astros exerceriam uma força sobre os objetos e sobre as pessoas.”

“Essa força estaria associada à radiação dos astros, que se propagaria em linha reta pelo espaço e influenciaria as coisas na Terra”, diz o astrônomo.

Um pouco mais tarde, o filósofo de origem judaica Solomon Ibn Gabirol (1021-1058) também se debruçou sobre o tema, “com um raciocínio simples, mas incipiente”, como pondera Rainho Mendonça.

A contribuição dele foi para a noção da inércia.

“Segundo ele, substâncias extensas e pesadas seriam mais imóveis que outras mais leves”, explica.

Já o filósofo e astrônomo iraniano Abd al-Rahman al-Khazini (1077-1155) apresentou a ideia de que corpos pesados em queda se moviam sempre em direção ao centro do planeta.

“Porém, ainda mais interessante foi sua proposição de que a thiql (termo em árabe que muitos autores traduzem como ‘gravidade’) dos corpos dependia de suas distâncias em relação ao centro da Terra”, acrescenta.

Embora tenham surgido muitas teorias nesse intervalo de tempo, uma ideia predominou — e, de certa forma, é muito próxima ao conceito da inércia.

Segundo o físico Fábio Raia, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, “a teoria mais difundida […] era a teoria do ímpeto […], que dizia que o contínuo movimento de um corpo se dá pela ação contínua da força”.

“Quando essa cessava, o corpo voltaria ao seu estado de movimento natural”, diz ele à BBC News Brasil.

Rainho Mendonça ressalta, nesse ponto, o papel fundamental do filósofo alexandrino Iohannes Philoponus (490-570).

“De acordo com ele, ao ser arremessado, um corpo recebe uma espécie de força motriz, que seria transferida do lançador para o projétil, permanecendo nele mesmo após o fim do contato. Com o passar do tempo, tal ‘força’ se dissiparia espontaneamente, fazendo com quer o movimento se encerrasse”, explica.

No caso da queda de objetos, contudo, Philoponus já entendia que essa força era provocada por algo que hoje é definido como gravidade.

“Segundo essa ideia, a Terra exercia uma atração sobre os objetos, que os puxava em direção ao seu centro”, explica à BBC News Brasil o filósofo Andrey Albuquerque Mendonça, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo (ESPM-SP).

Ele lembra, no entanto, que havia vozes dissonantes, como a do filósofo e teólogo francês Jean Buridan (1301-1358), que “propôs uma teoria alternativa para explicar a queda dos objetos”.

“Ele argumentou que os objetos caíam devido a uma força interna que os impelia para baixo, mas não conseguiu explicar o que causava essa força.”

Vale lembrar que tanto Leonardo da Vinci (1452-1519) quanto Galileu Galilei (1564-1642) estudaram a queda dos objetos. De acordo com Albuquerque Mendonça, o primeiro “propôs que a velocidade da queda dependia da densidade do objeto e da resistência do ar”, enquanto o segundo “determinou que todos os objetos caíam com a mesma aceleração, independente do seu peso”.

Nenhum dos dois, no entanto, conseguiu chegar a uma lei universal para o fenômeno.

A sacada de Newton foi genial porque ele conseguiu, certamente com o conhecimento acumulado por seus antecessores, não só entender uma força universal e fundamental, como também torná-la um fenômeno explicável.

Foi uma verdadeira revolução científica.

“Ele incorporou em suas teorias as novas concepções cosmológicas, afastando-se do universo aristotélico”, resume Goldfarb.

“Assim não se pensava mais na queda para o lugar natural, mas surgia a concepção da atração entre os corpos, a lei da gravitação: a matéria atrai matéria na razão direta das massas e pelo inverso do quadrado da distância entre os corpos.”

Segundo ele, foi quando deixou-se de “pensar em tendências para ocupar o lugar natural” e começou-se a “entender os movimentos de queda dos corpos como o resultado da atuação da força que a Terra exerce sobre os corpos”.

“Podemos concluir que a mecânica introduzida por Newton envolve profundas alterações no modo como o mundo moderno passou a conceber o cosmos, os corpos e as leis que regem seus movimentos”, diz ele.

“A teoria de Newton foi um marco importante na história da ciência e é considerada uma das maiores conquistas intelectuais da humanidade”, define Albuquerque Mendonça.

Por Edison Veiga

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