Hoje, quer o Bruno Reis quanto o seu competentíssimo braço direito na área técnica, Chico Giaconda, bateram na rocha: apesar de suados esforços, não conseguiram conectar-me ao programa Conversas Entre Cruzadas. Estranhamente, os ensaios correram à perfeição, mas na hora da verdade… Ou era o microfone que não dava conta do recado ou era o auscultador que se recusava a cumprir a sua função. Na MFM acredita-se, piamente, que houve aí uma mão invisível… Enfim, fiquei de fora, mas partilho aqui, de memória – já que não sou de escrever as minhas intervenções – com os leitores do Correio Angolense o que, mais palavra menos palavra, diria no programa a respeito da explosiva situação que se vive em Cafunfo.
I. Tem de ficar aqui claro que a opinião pública não está ainda suficientemente esclarecida sobre a natureza dos acontecimentos ocorridos no Cafunfo.
Como sabemos, no seu primeiro comunicado, o Comando Provincial da Polícia da Lunda Norte mistura numa mesma panela dois conceitos que se excluem: a manifestação e a rebelião. A Polícia que temos hoje não é a de 1975, 76 ou 77. Hoje temos na Polícia quadros altamente qualificados, pelo que é de todo lamentável que a corporação tropece em confusões dessa índole. Com essa barafunda toda, não sabemos até hoje se a violenta resposta da Polícia foi a uma manifestação ou se foi a uma rebelião. Os membros do Movimento do Protectorado publicaram nas redes sociais um documento através do qual eles teriam comunicado ao Governo local que se iriam manifestar no dia 30 de Janeiro. O Governo não desmentiu isso. Perante isso, coloca-se uma pergunta elementar: quem tem o propósito de tomar uma esquadra avisa antecipadamente o Governo, dando-lhe, inclusive, detalhes sobre o dia e o trajecto?
II. O Governo quer que a opinião pública o acompanhe na denúncia de que houve intervenção estrangeira nos acontecimentos de Cafunfo. Mas para o Governo conseguir isso, vai ter de fazer mais algum esforço: tem de mostrar esses homens; tem de mostrar o material bélico que eles trouxeram para se juntar à dita rebelião. Não é crível que a intervenção de zairenses se tenha resumido àquelas duas caçadeiras de um cano cada, àquelas duas AKMs, uma delas sem carregador, àquele machado ou então àquelas mixórdias.
III. Tudo o que se passou no Cafunfo só virá à luz do dia se esses acontecimentos forem investigados por entidades idóneas, que incluiriam, nomeadamente, a PGR, algumas organizações da sociedade civil de idoneidade inquestionável e outras. Mas aqui coloca-se um problema. O Governo ainda não tem uma posição consensual: nós ouvimos o Comandante Geral da Polícia a dizer que não há nada o que investigar e também ouvimos o ministro da Justiça a dizer o contrário. Então em que é que ficamos? Teremos inquérito ou não?
IV. Os acontecimentos de Cafunfo mostram o quão a sociedade angolana está fracturada. Uma parte da sociedade, sem saber nem o quê nem o porquê, subescreve de olhos fechados o que a Polícia e a media pública dizem. Para esse segmento houve rebelião e ponto final; um outro segmento questiona a versão do Governo e toma partido do outro lado. Mas o que me preocupa neste momento não são os cidadãos que tomam partido. Afinal, cada um forma a sua opinião de acordo com a informação que tem ou com as suas simpatias políticas ou partidárias. O que me inquieta é aquele segmento da população que se coloca em cima do muro, pregando uma moral que ele próprio não tem. Quê moral tem alguém que é incapaz de identificar o agressor e o agredido? Quê moral tem alguém que a esta altura do campeonato diz que a solução é sentarmos para reflectir sobre as causas desses acontecimentos que vêm abalando o país de uma forma quase generalizada? Precisamos de organizar uma conferência nacional para descobrirmos que as populações estão a ser impelidas pela fome, doença, nudez, falta de comida, desemprego? Isso não são razões suficientes para gerar o descontentamento? Esses fariseus, esses falsos moralistas é que me preocupam. Além de serem incapazes de distinguir o culpado e a vítima, pregam um discurso que induz o povo ao conformismo; A resignação e à inação. Essas pessoas querem que os angolanos se habituem à fome, doença, falta de educação, falta de cultura, enfim, querem que o povo continue a viver sob condições sub-humanas. Lá do alto do muro pregam a calma, ao mesmo tempo que vão dividindo a meias as responsabilidades pela tragédia por que todos os angolanos passam, já que falta-lhes coragem de ver e ouvir a verdade.
Essas pessoas que pregam o conformismo, o deixa para lá são perigosas até na forma como pretendem dividir o rebanho de Deus. Quando lhes apetece fortalecer as razões de uns, recorrem a uns tantos bispos e pastores, cuja mensagem, sabem de antemão, será sempre de adulação a quem está no poder. Quando, porém, o outro segmento do rebanho, que vê a realidade com olhos de ver e ouve com ouvidos de ouvir, se pronuncia, é um aqui-d’el-rei; que a igreja não deve meter-se na política; que a igreja está a invadir território dos políticos – como se a política fosse reserva exclusiva de alguns. Dessa gente não ouvimos, porém, nenhuma palavra acerca do silêncio daquela parte da Igreja, que se finge surda e muda perante acontecimentos trágicos que todos assistimos. Mas é exactamente a mesma gente que não se coíbe de pedir a ajuda da Igreja para pregar os bons hábitos, a boa educação, o respeito ao próximo, etc. Sucede que os bons hábitos, os bons costumes, a boa educação não são infundidos apenas pela Igreja. Isso passa, primeiro, pela escola. Escolas que não temos em quantidades e qualidades suficientes. Portanto, há aqui também que denunciar o cinismo desses equilibristas. Quando lhes convém, a ajuda da Igreja é bem-vinda; quando não lhes convém a igreja não é bem-vinda.
V. No comunicado do Bureau Político do MPLA de ontem chamaram a atenção dois aspectos: o reconhecimento público de que o país está tomado, todo ele, por assimetrias. Pela primeira vez, o MPLA reconheceu que em 45 anos não conseguiu esbater as assimetrias. Não só não as esbateu, como em muitos casos aprofundou-as. A própria vila de Cafunfo já teve uma vida decente. A cidade do Soyo, referida no comunicado, já foi decente e hoje tornou-se numa qualquer Matongué. Em todo o lado, só vemos miséria. Opulência só mesmo em umas poucas áreas de Luanda. Então porque negar ao povo o direito de contestar a miséria em que vive? Não foram a miséria, a humilhação que impeliram o MPLA a FNLA e a UNITA para a luta de libertação nacional?
Outro aspecto que me chamou atenção no comunicado do BP foi a referência à nacionalidade de Adalberto Costa, associando-a às causas dos acontecimentos do Cafunfo. Isso foi jogo muito baixo. Baixo mesmo. Aliás, em matéria de golpes baixos, o MPLA dá cartas. Em 1975, quando se viu acossado, foi ao baú buscar a patranha de que soldados da FNLA se empanturravam de corações humanos. A Lei da Nacionalidade foi aprovada com a maioria parlamentar do MPLA. Se o MPLA é assim tão cioso da nossa nacionalidade, porque não impôs nessa lei a proibição da dupla nacionalidade para todos os titulares de cargos políticos? Ainda há pouco tempo, não veio a público que o ministro da Indústria e do Comércio é também português? Alguém no seio do MLA levantou alguma onda? A génese do MPLA não é constituída por descendentes de portugueses? Alguma vez se pôs em causa o patriotismo do MPLA por ser uma criação de descendentes de portugueses? As maiores fortunas angolanas colocadas em Portugal não são de membros do MPLA? Isabel dos Santos, que não nasceu em Angola, contrariamente a Adalberto Costa, não teria sido indicada pelo pai para sucedê-lo se ela tivesse essa ambição? Se essa fosse a vontade de José Eduardo dos Santos, quem no MPLA diria nhô?
Enfim, foi uma jogada muito baixa, reveladora do profundo desespero que tomou conta do MPLA. MPLA que agora diz que 45 anos não foram suficientes para esbater as assimetrias. Por certo quer mais 200 anos, não para acabar com as assimetrias, mas para aprofundá-las. Porque essa é a sua vocação!