O Supremo Tribunal Federal fez uma risca no chão das relações entre Poderes ao condenar a oito anos e nove meses de prisão um deputado federal denunciado por crimes de ameaça ao Estado democrático de Direito e coação no curso do processo.
Jair Bolsonaro (PL) foi até a porta da corte, apagou a linha e jogou detritos ao redor quando anunciou, logo no dia seguinte, que concederia perdão da pena de Daniel Silveira (PTB-RJ). O presidente usou o meio que tinha em mãos para tensionar a corda em direção à cúpula do Judiciário.
O dispositivo jurídico tem embasamento e um custo político elevado.
Bolsonaro correu o risco.
O núcleo-duro de seus apoiadores provavelmente foi dormir feliz pela disposição e coragem do presidente em defender aquele que se transformou em mártir da causa bolsonarista. Como escrevemos por aqui na véspera, ninguém melhor do que Silveira expressa melhor a estética de uma turma marombada, bruta, agressiva e oca.
Silveira não foi condenado por divergir de decisões da Corte, mas por pregar em suas redes que o STF deveria ser invadido e seu ministro Alexandre de Moraes, agarrado e arremessado em uma lata de lixo.
Dos ministros do Supremo, apenas Kassio Nunes Marques entendeu que a pregação pairava apenas no campo das ideias fantasiosas, sem risco de descambar para a violência física – isso em um país onde juízes, prefeitos e parlamentares são assassinados em via pública sem que os mandantes sejam sequer identificados.
Bolsonaro age como se tivesse salvado Nelson Mandela da prisão determinada pelas forças que o perseguiam.
O que ele fez, na verdade, foi se amarrar com uma corda a um deputado violento que mais assusta do que comove quem observa com preocupação o desandar das coisas no país. Estes podem ser determinantes para selar sua derrota nas urnas, em outubro.
O Barrabás da vez é um ex-policial militar licenciado por “mau comportamento” e que chegou a ficar 80 dias preso ou detido. Em seu tempo na corporação, ele recebeu 14 apreensões e duas advertências. Uma delas dizia que suas transgressões tornavam “cristalina sua inadequação ao serviço militar”.
Nisso o deputado e o presidente se assemelham: ambos eram considerados maus militares por seus superiores até que resolveram migrar suas disposições golpistas para a política.
Que Bolsonaro aja como age em defesa da disciplina, da ordem e da hierarquia é antes uma ironia do que uma promessa inalcançável.
Em 2018, Bolsonaro ampliou seu leque de apoiadores para além dos radicais que o bajulavam desde os tempos de parlamentar ao fingir que não representava risco nem à democracia nem à estabilidade dos negócios –ponto importante para quem avalia a temperatura de um país antes de abrir a carteira e investir.
Paulo Guedes funcionou, durante certo ponto, como anteparo aos temores de que, uma vez eleito, Bolsonaro fizesse exatamente o que tem feito.
Ao salvar a pele de Silveira, mau policial, mau deputado e mau cidadão, Bolsonaro escancara o rosto e os propósitos reais de sua gestão. Nenhum de seus antecessores fez o mesmo por um aliado enroscado com a Justiça.
Uma crise entre Poderes não é exatamente o que estava no horizonte de quem, passada a pandemia, esperava um mínimo de pacificação institucional para que o país retomasse os rumos, inclusive econômicos.
A decisão de Bolsonaro de desafiar uma ordem do Supremo, mesmo com base legal, colocou tudo a perder. Juridicamente, a estratégia pode ser lida como um xeque-mate —afinal, não está certo se o próprio Supremo conseguirá reverter a decisão do presidente.
Politicamente, Bolsonaro parece ter serrado o galho onde estava sentado. Não soa muito inteligente, afinal, uma decisão do tipo para quem passará os próximos meses tentando convencer os eleitores mais moderados de que, apesar dos dentes e da associação com o que tem de pior e mais ameaçador no país, sua turma só assopra, mas não morte.
Silveira desmente essa fantasia até quando pisa. E é com pessoas como ele, violentas, destemperadas e despreparadas, que Bolsonaro decidiu marchar. É como diz o ditado: diga-me com quem andas…