Por: Reginaldo Silva (Jornalista)
Já não é uma novidade, nem pouco mais ou menos, ouvir dizer ou ler que em Angola há violações dos direitos e das liberdades fundamentais.
Também não é novidade para quem vive em Angola constatar facilmente no quotidiano a realidade deste tipo de violação nos mais diferentes espaços públicos onde as autoridades e os cidadãos se cruzam e pelos mais distintos motivos.
Queríamos destacar aqui os mais políticos por serem os mais sensíveis, com as atenções voltadas para a liberdade de expressão que acaba por ser a mãe de todos os direitos.
“Quem não chora não mama”. É por aí que tudo começa.
E as autoridades não são apenas as policiais, nem as judiciais. Falamos do simples funcionário de uma administração municipal. A tal ponto é recorrente este tipo de choque/ruptura com o espírito e a letra dos direitos humanos que a maior parte dos casos acaba por nem sequer ser devidamente valorizado por quem de direito, mesmo quando há denúncias formais.
Neste domínio já é, contudo, uma grande novidade vir alguém de fora, com a responsabilidade politico-diplomática de um Comissário da União Africana afirmar que Angola não tem qualquer tipo de problemas com os direitos humanos.
Foi o que aconteceu recentemente com a visita que efectuou a Luanda o Senhor Ramy Ngoy Lumbu que é o Presidente da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. As declarações foram feitas pelo diplomata à saída de um encontro que manteve no passado dia 6 de Setembro com o Ministro do Interior, Eugénio César Laborinho.
“A julgar pelo que vi nas visitas de constatação e pelo que ouvi do senhor Ministro, não existe violação dos direitos humanos. Nesse sentido, a acção do Governo Angolano está perfeitamente alinhada às recomendações de Maputo”, sublinhou Ramy Lumbu.
Não nos foi possível ouvir a versão original das declarações do diplomata africano que é natural da República Democrática do Congo (RDC) e ocupa o cargo desde 2021.
Quem não gostou mesmo nada de ouvir tão simpática avaliação da situação dos direitos humanos em Angola foi o Bloco Democrático (BD), partido liderado por Filomeno Vieira Lopes. O Presidente do BD, curiosamente, também esteve com o Ministro do Interior dois dias antes do encontro que Eugénio Laborinho manteve com o diplomata africano e para protestar contra mais uma carga policial que teve lugar nas ruas de Luanda.
O BD considera que o Presidente da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos deve retratar-se “porque não é tolerável que ignore que Angola, subscritora da Carta dos Direitos Humanos e dos Povos (1990), viola de forma reiterada, inequívoca e grosseira os Direitos Humanos, sendo os factos mais recentes a repressão de manifestações e protestos, a perseguição e encarceramento de sindicalistas e activistas cívicos, havendo, neste momento, cidadãos presos, por delito de opinião.
Aliás, a Amnistia Internacional exigiu recentemente que as autoridades angolanas libertem imediatamente quatro activistas injustamente detidos há um ano e cuja saúde tem vindo a deteriorar-se drasticamente atrás das grades”.
De notar que Filomeno Vieira Lopes pediu para falar com o Ministro para protestar contra a repressão que se abateu sobre alguns jovens activistas que no passado dia 31 de Agosto pretendiam manifestar-se em Luanda contra o agravamento das condições de vida da população.
A repressão policial estendeu-se aos profissionais da comunicação social que estavam no local da concentração de onde a manifestação pretendia sair, tendo o Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA) emitido a propósito um vigoroso comunicado de repúdio. O SJA considerou que estes “actos dos agentes da Policia Nacional são recorrentes e configuram um atentado à liberdade de imprensa nos termos do Código Penal (art.226º)”.
Não havendo qualquer responsabilização dos policias envolvidos, o SJA está convencido que tal omissão “pode significar um incentivo à violação das liberdades e garantias fundamentais, em particular dos jornalistas”.
Em matéria de direitos humanos não é tudo, estando agora as águas particularmente agitadas em torno do articulado de uma lei que acaba de ser promulgada e com a qual foram extraordinariamente agravadas as penas contra o crime de vandalização dos bens públicos.
Na verdade, trata-se de uma lei redundante, pois o actual Código Penal tem disposições mais do que suficientes para fazer face a este tipo de destruição. Efectivamente a referida vandalização tem estado a aumentar, é preocupante pelo seu alargado impacto social, mas não deixa de reflectir na medida exacta o agravamento dos níveis da pobreza extrema prevalecente no país.
Pelos vistos está tudo a aumentar.
Pelos vistos “estamos sempre a subir”, uma expressão que se tornou muito popular em Angola e que traduz bem o humor dos angolanos diante das dificuldades crescentes.
Os críticos deste novo diploma estão convencidos que se trata de um “gato escondido com o rabo de fora” com o qual o Executivo pretende ter mais um instrumento legal para reprimir o direito à manifestação. Como novidade, este diploma inclui os promotores de manifestações que passam agora a ser responsabilizados criminalmente na eventualidade de, no decorrer dos actos públicos que resultem da sua iniciativa, acontecerem destruições de bens públicos ou particulares.
Mas a cereja em cima do bolo nestas andanças mais recentes pelos caminhos sempre sinuosos dos direitos humanos até já tem número.
É o 333 que é o número do artigo do Código Penal que criminaliza o “ultraje ao Estado, seus símbolos e órgãos”. Reza o 333 que “quem, publicamente, e com intuito de ofender, ultrajar por palavras, imagens, escritos, desenhos ou sons, a República de Angola, o Presidente da República ou qualquer outro Órgão de Soberania é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou multa de 60 a 360 dias.”
Mais uma vez não há aqui propriamente uma novidade nesta formulação que já existia na antiga lei da segurança de estado. Por outro lado, o novo Código Penal já tem pelo menos dois anos de vigência. O que é facto é que o 333 voltou a surgir com muita força como se fosse a primeira vez, como se a lei tivesse sido aprovada ontem. A tal ponto o interesse disparou que até dos Estados Unidos já nos chegou um parecer encomendado a Associação dos Advogados Americanos que atende pela siga original de ABA, American Bar Association. O parecer é arrasador com recomendações muito directas e muito específicas no sentido de tudo ser feito para se evitar que as pessoas sejam processadas.
O 333 conforme está formulado vai permitir, bastando para tal querer, que quem direito processe o autor até de uma simples caricatura onde o rosto do actual Presidente surja deformado pela sua imaginação mais satírica. Quando se fala em caricaturas, de uma forma geral, passe o exagero, todos pensam no nome do mesmo cartoonista que se tem destacado na imprensa local pelos seus acutilantes “bonecos” que semana sim, semana também, têm fustigado o desempenho do Executivo de João Lourenço.
Sendo um crime público, competirá necessariamente à Procuradoria-Geral da República decidir quem ultrajou e como ultrajou. É aí que começa o outro problema, pois o Ministério Público em Angola não é independente do poder político, sendo muito questionável a sua relativa autonomia em que mesmo assim poucos acreditam.
Mas o maior problema do 333 é mesmo a inibição da crítica ao PR com o receio do processo judicial. Os juízes são independentes, mas também poucos acreditam na sua equidistância sobretudo quando em causa estão os interesses relacionados com uma suposta defesa do bom nome e da boa imagem do Presidente da República.