A candidata independente às eleições presidenciais, Ana Gomes, lembra que o novo contexto de confinamento vai reflectir-se num aumento da abstenção e representa uma ameaça para a democracria. Caso seja eleita, a embaixadora e militante socialista promete aplicar, com transparência, os fundos europeus para que Portugal recupere desta crise.
RFI: Há condições para manter a campanha e para garantir que os portugueses votem em segurança no próximo dia 24 de Janeiro?
Ana Gomes: Infelizmente, as condições vão terminar numa tremenda abstenção, o que não é bom para a democracia, não é bom para a República. Mas, por constrangimentos constitucionais, conjuntamente àqueles que são impostos pela crise pandémica, e não tendo o Parlamento legislado, nem tendo o Presidente da República pedido ao parlamento para legislar soluções alternativas, estas são as condições em que iremos votar.
Lamentavelmente, com muitos, muitos emigrantes impossibilitados de ir votar, porque o Parlamento não legislou sobre o voto por correspondência. Muitos portugueses, em Portugal, estarão impossibilitados de irem votar por entenderem que não têm as condições de segurança, face à crise pandémica, para irem votar. Não obstante ter sido facultado o voto antecipado. Isto é, há pessoas que neste momento já estão a votar.
Caso seja eleita Presidente da República, qual vai ser a sua prioridade?
A minha prioridade vai ser aplicar bem, com transparência, com prestação de contas, os fundos europeus para que Portugal possa recuperar desta tremenda crise, que está a criar ainda maiores desigualdades e injustiças. (Para) Permitir a Portugal fazer as reformas de fundo de que precisa para sair da estagnação.
Antes de mais, o sector da Justiça precisa de funcionar, hoje está bloqueado. Precisamos de investir na economia verde e na economia azul, com criação de empregos de qualidade, decentes e não pela continuação do esmagamento dos salários e pela continuação de empurrar os cidadãos a emigrar.
Hoje, muitos cidadãos qualificados emigram porque não têm condições para a sua realização pessoal e profissional em Portugal. É em Portugal que temos de criar empregos de qualidade para os jovens qualificados que saem das nossas escolas.
Manifestou-se na quarta-feira preocupada com a notícia de vigilância policial de dois jornalistas que investigavam o caso e-Toupeira ordenada por uma procuradora, sem autorização de qualquer juiz. Ana Gomes defendeu que “da mesma maneira” que defende “denunciantes como Rui Pinto”, considera o trabalho dos jornalistas “absolutamente indispensável a uma sociedade livre, a um Estado de Direito democrático”?
Aparentemente, esse processo iniciou-se ainda no período em que era Procuradora-Geral da República a Dra. Joana Marques Vidal, prolongou-se com a actual procuradora-geral da República, e é bem uma demonstração das proporções que estão a ocorrer na Justiça.
Sem dúvida está a ser violada a lei que consagra os estatutos dos jornalistas. Está a ser violada a liberdade de imprensa. Estão a ser violados os princípios fundamentais de um Estado de direito, de uma democracia, consagrados na Constituição e no tratado da União Europeia.
Quanto às relações externas, qual é o papel que o Presidente da República pode ter no reforço das relações com os países afro lusófonos?
O papel de quem é eleito Presidente da República é muito relevante na política externa portuguesa. Na projecção de Portugal como um país influente na União Europeia, no sentido de conseguir regulação a nível europeu e global dos principais cancros das nossas democracias.
O funcionamento dos offshores, da fuga ao fisco, da criminalidade e branqueamento de capitais, financiamento de terrorismo, através dos offshores. Também a regulação digital e a quebra dos monopólios das grandes plataformas digitais. Tudo isso depende da regulação da União Europeia e Portugal pode ser muito mais pró-activo. Quem é eleito Presidente da República pode fazer uma diferença nesse sentido.
Também, naturalmente, na aproximação entre povos, designadamente com os povos a que nós estamos mais ligados, os países de expressão portuguesa. Com os povos e não com os dirigentes. Porque é fundamental criar dinâmica na CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa], através das organizações da sociedade civil, apoiando o desenvolvimento da sociedade civil nesses países. Sem dúvida, quem elegermos Presidente da República pode fazer uma grande diferença nesse domínio e eu, sendo eleita, não deixarei de o fazer.
A seu ver, o chefe de Estado pode garantir o sucesso da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia?
De acordo com a nossa Constituição, o chefe de Estado tem de respeitar a separação de poderes, portanto o relacionalmente que tem de ter com o governo é o de uma franca e leal articulação. Do meu ponto de vista, a Presidente deve apoiar o governo, democraticamente eleito pelos portugueses, mas deve também, ao mesmo tempo, exercer a sua magistratura de influência para influenciar o governo e os outros órgãos democráticos a cumprirem o que os cidadãos esperam.
Deve ainda zelar pelo regular funcionamento das instituições democráticas e hoje, claramente, várias instituições democráticas não estão funcionar bem em Portugal. Já referi o caso da Justiça. Porque a Justiça demorada é Justiça negada. A Justiça tem gravíssimos bloqueamentos em Portugal, bloqueamentos que servem à criminalidade e aos interesses que procuram capturar o Estado, em prejuízo do interesse público.