Quando os resultados da CoronaVac foram divulgados, mostrando eficácia global de 50,38% contra a covid 19, o imunizante foi alvo de ataques por ter um percentual de proteção menor que imunizantes como Oxford-AstraZeneca e Pfizer, embora também impedisse 100% de casos graves da doença.
Agora, porém, a vacina feita pelo Instituto Butantan em conjunto com a farmacêutica chinesa Sinovac, pode apresentar uma vantagem importante contra as variantes da África do Sul (batizada de 501.V2) e de Manaus (P.1), que possuem a mutação E484K, capaz de driblar a ação de anticorpos do sistema imune.
Pesquisas preliminares acenderam um sinal de alerta para a eficácia das vacinas contra essas novas formas do coronavírus. A África do Sul chegou a suspender o início da vacinação com Oxford-AstraZeneca depois de um estudo preliminar da Universidade de Witwatersand, em Joanesburgo, apontar que a vacina oferece “proteção mínima” contra casos leves e moderados causados pela variante que predomina no país.
Segundo virologistas e microbiologistas ouvidos pela BBC News Brasil, a CoronaVac possivelmente terá sua eficácia menos afetada por variantes, embora pesquisas ainda precisem ser concluídas para determinar esse impacto.
Uso do vírus inteiro na vacina
A chave para a possível vantagem da vacina sino-brasileira está no material genético que ela utiliza.
A CoronaVac contém o vírus inteiro inativado da Sars-CoV-2, enquanto as demais vacinas injetam no organismo humano genes da spike do coronavírus – como é chamada a proteína que age como ponto de ligação com as células humanas.
O problema é que a mutação E484K, que tanto preocupa os cientistas, ocorre exatamente na spike ou seja, no ponto de ligação entre o vírus e a célula. Esse é o local onde os chamados anticorpos neutralizantes, produzidos pelo sistema imune, se encaixam para impedir a entrada do vírus na célula.
As vacinas que focam na spike apostam na produção desse tipo de anticorpo. É o caso da Oxford-AstraZeneca, Moderna, Pfizer e Novavax. Mas, as variantes de Manaus e África do Sul parecem ser capazes de contornar a ação de anticorpos neutralizantes.
“Diferentemente dessas vacinas, a CoronaVac aposta no vírus inteiro inativado, não apenas no gene da spike. Com isso, várias células do sistema imune são ativadas e são produzidos vários outros anticorpos, não só os neutralizantes”, explicou à BBC News Brasil a microbiologista Ana Paula Fernandes, pesquisadora do Centro de Tecnologia em Vacinas e Diagnóstico da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
O virologista Julian Tang, professor da Universidade de Leicester, no Reino Unido, também avalia que o percentual global de eficácia da CoronaVac pode ser menos afetado pelas variantes de Manaus e África do Sul.
A vacina sino-brasileira reduz em 50,38% a ocorrência de sintoma da covid-19, independentemente da gravidade, o que é conhecido como eficácia global. O percentual mínimo de eficácia global para uma vacina ser aprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é de 50%. Contra casos leves, a CoronaVac apresenta percentual de proteção de 78% e, contra casos moderados e graves, de 100%.
Ao não investir tanto na produção do anticorpo neutralizante, a CoronaVac apresentou taxas piores de eficácia para impedir por completo sintomas da covid-19, independentemente da gravidade, já que é justamente esse anticorpo que barra a entrada do vírus na célula. Mas, agora, a opção por utilizar o vírus inteiro na vacina, pode dar à CoronaVac vantagem no combate a variantes com a mutação E484K.
“Ao injectar o vírus inteiro inativado, a CoronaVac induz anticorpos que interagem com todas as outras 20 a 30 proteínas do vírus. Embora esses anticorpos não neutralizem (o vírus), eles reduzem o grau de infecção e a transmissão”, disse Tang à BBC News Brasil.
Pesquisas em andamento
Ainda faltam pesquisas conclusivas sobre a eficácia da CoronaVac e demais vacinas no combate a variantes, mas vários fabricantes já anunciaram que trabalham na produção de novos imunizantes ou doses de reforço capazes de responder à mutação E484K.
O Instituto Butantan, que fabrica a CoronaVac em conjunto com a biofarmacêutica chinesa Sinovac, disse à BBC News Brasil que “realiza estudos em relação à variante identificada no Amazonas, ao mesmo tempo em que a Sinovac avalia variantes encontradas na Inglaterra e na África do Sul”.
O Butantan destacou, porém, que a CoronaVac deve gerar “uma resposta imune ampla” contra a doença, por ser produzida a partir do vírus inteiro inactivado.
As pesquisas mais amplas até o momento foram feitas com as vacinas Novavax e Johnson & Johnson. Uma delas, divulgada em 29 de janeiro, mostrou que a eficácia global da Novavax cai de 95,6%, contra o vírus original, para cerca de 60%, quando aplicada na África do Sul, onde predomina a variante com mutação E484K.
Já a vacina Johnson & Johnson, de dose única, mostrou uma eficácia de 72% para formas moderadas e graves da covid-19 nos Estados Unidos, 28 dias após a injeção. Na África do Sul, esse percentual caiu para 57% e, na América Latina, para 66%.
Mas não houve casos de mortes. Para esse estudo, foram analisados os resultados de 43,7 mil voluntários.
Mais alarmante foi o resultado de uma pesquisa preliminar feita na África do Sul com 2 mil pessoas que revelou “proteção mínima” da Oxford-AstraZeneca contra casos leves e moderados provocados pela variante.
A pesquisa, feita pela Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, ainda não foi publicada e revisada. Não foi avaliada a eficácia da vacina de Oxford em evitar casos graves e mortes, porque o público do estudo era jovem e sem comorbidades.
“As vacinas que podem perder o maior nível de eficácia são as focadas numa única porção da proteína spike, que é onde o vírus está mutando. Porque você tem um repertório menor de outros mecanismos para socorrer o seu organismo, já que sua resposta vai estar focada naquela região da molécula onde o anticorpo encaixa”, avalia a microbiologista Ana Paula Fernandes, que também é professora titular da UFMG.
Protecção alta contra casos graves
Até agora, porém, as pesquisas apontam que as vacinas continuam apresentando eficácia contra casos graves da covid-19, aqueles que podem resultar em internações e mortes.
Mas como é que, mesmo focando exatamente na proteína que sofreu mutação para driblar anticorpos, os imunizantes ainda parecem apresentar grau importante de proteção contra variantes?
“É possível que os anticorpos neutralizantes gerados por essas vacinas continuem conseguindo se ligar (à proteína spike) ainda que com menor afinidade. Então, a imunidade não desaparece”, explica Ana Paula Fernandes.
“E o nosso próprio sistema imune não coloca os ovos numa cesta só. Ele responde à vacina apostando em outros tipos de anticorpos, não só os neutralizantes, e ativando células de defesa do organismo, os linfócitos. Mas a qualidade dessa resposta depende de cada organismo.”
Essas hipóteses ajudam a explicar por que as vacinas têm eficácia reduzida contra infecções leves e moderadas, mas continuam garantindo proteção para casos graves.
Os anticorpos e linfócitos ajudam a reduzir a concentração e multiplicação do vírus no nosso organismo, garantindo quadros menos graves da doença. Quanto maior a carga viral, maior a possibilidade de desenvolver sintomas mais graves da covid-19.
“O que apareceu nesses dados preliminares é que você teve uma queda no percentual de pessoas que não tiveram nenhum sintoma. Mas não teve aumento no percentual de casos graves”, disse à BBC News Brasil o virologista Felipe Naveca, que participou do primeiro sequenciamento da variante de Manaus.
“Se a vacina continua protegendo para as formas graves da doença, essas pessoas continuam protegidas para aquilo que é o mais importante da vacina”, completa Naveca, que é pesquisador do Instituto Leônidas & Maria Deane (ILMD/FioCruz).
Dose adicional de imunizante
Apesar de estudos preliminares mostrarem que as vacinas tendem a manter a proteção contra casos graves da covid-19, pesquisadores defendem que os fabricantes produzam novas vacinas ou doses de reforço adaptados a variantes, para reduzir a circulação do vírus e impedir que pessoas vulneráveis desenvolvam a doença.
A Oxford-AstraZeneca anunciou trabalhar numa dose adicional de sua vacina, capaz de responder à mutação E484K, e que deve funcionar como reforço às duas doses aplicadas hoje. Outras fabricantes, entre elas Moderna, Pfizer e Novavax, também iniciaram pesquisa para desenvolver novas vacinas ou doses adicionais contra variantes.
“Pessoas que já se vacinaram poderão ter que tomar mais uma dose, quando adaptações das vacinas forem concluídas para proteger contra variantes”, disse à BBC News Brasil o virologista Julian Tang, professor da Universidade de Leicester, no Reino Unido.
“Nessa mesma época no ano passado, tínhamos o vírus que surgiu em Wuhan, na China. Neste ano, já temos três variantes que causam preocupação. Nesse período do ano que vem, poderemos ter mais variantes. Então, é possível que a vacina tenha que ser atualizada todo ano para acompanhar esse ritmo”, avalia.