Medo e esperança eram os sentimentos comuns àqueles judeus que, oriundos de várias localidades do Leste Europeu, se reuniram na Bessarábia, na parte que hoje pertence à Romênia. Era começo de 1903 e, de acordo com alguns pesquisadores, ali estavam 148 pessoas, de 38 famílias diferentes.
Menos de dois anos mais tarde eles formariam a Philippson, a primeira colônia judaica a funcionar no Brasil.
O medo que eles nutriam era das políticas antissemitas do império russo, sobretudo depois da ascensão de Alexandre 3º (1845-1894), continuadas por seu filho Nicolau 2º (1868-1918).
Naquela época, eram constantes os pogrons, ataques deliberados a casas, empresas e centros religiosos de judeus. E tal violência era incentivada pelo imperador russo, que pretendia ver toda a região convertida à Igreja Ortodoxa.
A esperança era encontrar, do outro lado do Atlântico, uma terra acolhedora. Não apenas para ganharem dinheiro e voltar, como era o desejo de tantos imigrantes que queriam simplesmente “fazer a América”; os judeus queriam fazer de terras distantes – na América do Norte (Canadá e Estados Unidos) ou do Sul ( Argentina e Brasil) seu novo lar.
Eram russos, lituanos, estonianos, ucranianos, bielorrusos, moldávios e romenos, aqueles 148. Bancados por uma organização beneficente chamada Jewish Colonisation Association — mais conhecida pelas siglas JCA ou ICA —, eles tiveram um treinamento de cerca de um ano e meio visando a se preparem para a vida nova.
Em geral acostumados a trabalhos no comércio, iriam ter de se tornar agricultores e pecuaristas. Em um novo local, um novo clima, com uma nova língua. Imigrar não é nada fácil. Naquele ano, a ICA comprou uma antiga propriedade rural no município de Santa Maria, Rio Grande do Sul, a Fazenda do Pinhal.
A terra prometida
Aquele espaço seria o novo lar dos imigrantes judeus. E ganharia o nome de Philippson para homenagear Franz Philippson (1851-1929), o então presidente da Compaigne Auxiliare de Chemins Du Fer au Brésil, que explorava as linhas de ferro naquela região.
Philippson era acionista da ICA, organização criada em 1891 pelo barão Maurice de Hirsch, um judeu alemão filantropo que se dedicou a ajudar aqueles que eram vítimas ou corriam risco de opressão antissemita.
A localização não foi obra do acaso. “Quando se buscavam terras para instalar a primeira colônia agrícola no Brasil, após inspeções de técnicos agrícolas, a ICA foi autorizada a comprar e colonizar terras no extremo sul do Brasil. Esta escolha veio a calhar com os interesses do banqueiro belga Philippson, que além de vice-presidente da ICA, era presidente da companhia de estradas de ferro que havia obtido a concessão do governo para a construção e administração de vias ferroviárias no Rio Grande do Sul”, pontua, em e-mail à BBC News Brasil, a socióloga Anita Brumer, professora aposentada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O Rio Grande do Sul já contava com imigrantes e descendentes de imigrantes judeus, pelo menos desde o início do século 19. Conforme conta o escritor, ensaísta, poeta e advogado Marcos Iolovitch (1907-1984) em seu livro Numa Clara Manhã de Abril, publicado pela primeira vez em 1940, em 1900 havia 54 judeus no Estado. “É possível que este número fosse maior, pois os números referidos para a população judaica registrada no Brasil no final do século 19 contém algumas contradições”, escreveu ele.
“Lembro que esta concessão previa a obrigação da empresa de assentar colonos ao longo da via férrea e a construir uma escola e um templo quando o estabelecimento colonial incluísse mais de 30 famílias, como forma de facilitar a integração social e econômica dessas famílias”, acrescenta Anita Brumer.
A viagem da Bessarábia para o Brasil durou dois meses. Em carroças, eles foram de lá até Hamburgo, onde embarcaram em um vapor com destino ao Rio de Janeiro. Na então capital do Brasil trocaram de embarcação para um novo trecho de viagem marítima, agora com destino a Rio Grande, no litoral sul do Rio Grande do Sul. De Rio Grande a Santa Maria, foram de trem.
No dia 18 de outubro de 1904, eles chegaram às terras que seriam seu novo lar. Nascia aquela que, oficialmente, era a primeira colônia judaica em terras brasileiras.
‘Incapacidade para esse tipo de serviço’
“Philippson terminou em 1926 e os habitantes acabaram indo para a cidade”, conta à BBC News Brasil a historiadora Roberta Alexandr Sundfeld, diretora do Museu Judaico de São Paulo.
Sua avó, Frida Alexandr (1906-1973), nasceu na colônia agrícola judaica e escreveu um livro de memórias, publicado pela primeira vez em edição restrita em 1967 e que, agora, foi reeditado e relançado sob o nome de Filipson: Memórias de Uma Menina na Primeira Colônia Judaica do Rio Grande do Sul (Chão Editora). Essa grafia aportuguesada do nome da comunidade foi a escolhida por Alexandr quando escreveu a obra.
“O fim da colônia agrícola foi por causa de algumas razões. Em primeiro lugar porque os habitantes eram todos originalmente ligados ao comércio. Na Bessarábia eles não tinham terras, não sabiam plantar, tratar da terra. E as terras onde eles estavam não eram muito férteis. O outro motivo era que eles queriam que os filhos estudassem”, pontua Sundfeld.
“Os judeus trazidos pela ICA — além de muitos que vieram por conta própria — dedicavam-se à agropecuária, embora a maioria deles fosse proveniente das cidades e não tivesse experiência prévia nesta atividade”, frisou Iolovitch, em seu livro —ucraniano, ele próprio viveu em uma colônia agrícola vizinha a Philippson, a Quatro Irmãos, fundada em 1912. “Este foi um importante fator — embora não o único — a explicar o insucesso das colônias judaicas.”
Sobre o despreparo dessas pessoas para o manejo rural há uma curiosa passagem no livro Filipson, quando Frida Alexandr escreveu sobre o gado que seu pai e seu irmão mais velho foram buscar logo depois que eles se instalaram na nova casa, porque “tínhamos direito e estava à nossa disposição no pasto da Administração”.
“Voltaram eles em companhia do peão do administrador, pois nunca tinham antes lidado com gado. Receavam aproximar-se dele. Intimidavam-nos os grandes cornos retorcidos”, descreveu. “O peão ensinou-lhes como tirar o leite. Umas vacas eram bem mansas, mas outras necessitavam de ser amarradas pelos chifres e pelo pé esquerdo a um tronco, do contrário não consentiriam a ordenha ou entornariam a vasilha do leite com um coice.”
Ela escreveu que diante da “incapacidade” manifestada por seu pai e seu irmão “para esse tipo de serviço”, a tarefa acabou “entregue às duas mulheres da casa”.
Revisitar esses relatos surpreendeu até mesmo a neta da autora, a historiadora Roberta Sundfeld. “As memórias mais antigas que eu tenho de minha avó são ligadas à comida, à torta de maçã, aos cheiros. Tive uma surpresa quando li o livro e vi o quanto eles eram religiosos, porque eu não imaginava. Mas me chamou muito a atenção também ver como o mundo mudou em 120 anos”, comenta ela.
“Eu não imaginava que minha avó montava a cavalo em pelo, que ela fosse capaz de depenar um frango, que em Philippson não havia luz elétrica, que banho era no riacho. Tudo isso me impressionou bastante quando reli o livro agora nessa nova publicação”, diz.
Iolovitch também relatou que a vida nas colônias “era muito difícil”, o transporte “pelas ferrovias existentes era caro”, e as condições de saneamento “e de acesso a médicos e escolas” eram precárias.
Filho de imigrantes judeus da Bessarábia, o escritor Moacyr Scliar (1937-2011) assinou o prefácio de uma das edições do livro de Iolovitch. Em seu texto, ele ressaltou que “o empreendimento, contudo, não teve o êxito esperado”, referindo-se a Philippson. “Por numerosos fatores — a carência de recursos, a inexperiência dos emigrantes, a tradicional instabilidade política da América Latina […] arrefeceram o ânimo dos colonos e fizeram com que a maioria deles buscasse as cidades.”
Com o término da colônia, os judeus se instalaram parte em Santa Maria, parte em Uruguaiana, parte em Porto Alegre — como foi o caso de Frida Alexandr. Ela viveria como dona de casa e voluntária em trabalhos sociais. Quando publicou seu livro, tornou-se a primeira e única mulher de Philippson a escrever sobre a experiência.
Expulsão, atração
No posfácio da obra recém-lançada, a pesquisadora Regina Zilberman, professora na UFRGS, destacou a primazia daquela colônia, que “não foi a primeira colônia formada por europeus que emigraram para o Brasil, tendo sido antecedida, por exemplo, pela Colônia Cecília, que reuniu, no interior do Paraná, um grupo de pessoas originárias da Itália que comungava ideias anarquistas”.
“Também não foi a que, pela primeira vez, resultou da aquisição de terras por um mecenas interessado em ver prosperar uma comunidade caracterizada por princípios comuns, já que, no caso da experiência paranaense, foi Giovanni Rossi (1856-1943), ideólogo do anarquismo, quem escolheu o lugar de instalação dos imigrantes, havendo comprado as terras ocupadas por seus seguidores”, acrescentou.
“Não foi, enfim, a primeira colônia dentre as patrocinadas pela ICA estabelecida na América Latina, tendo sido precedida pelas experiências de Moises Ville e de Lucienville, na Argentina, na última década do século 19”, frisou a pesquisadora.
Em sua contextualização, Zilberman posicionou a experiência agrícola judaica no Rio Grande do Sul como algo parte da “tendência que estimulava a transferência de famílias de um país a outro, e especialmente, de um continente a outro, este sendo sobretudo a América, na busca de um tipo de vida mais condizente com suas expectativas existenciais, filosóficas e, no caso dos judeus, étnicas e religiosas”.
“Mas a colônia assentada no Rio Grande do Sul”, concluiu a pesquisadora, “foi pioneira sob outro aspecto: constituiu a primeira colônia judaica oficial do Brasil, implantada a partir de recursos captados no exterior, mas apoiada pelo governo estadual […].”
Conforme ressalta a socióloga Brumer, todo movimento migratório precisa ser analisado sob dois prismas: os fatores de expulsão e os de atração. “Na Rússia, a situação dos judeus se deteriorou principalmente quando Alexandre 3º assumiu o governo, em 1881, revertendo reformas liberais que haviam sido introduzidas por seu pai. Com as novas medidas os judeus foram duramente afetados pela perda de garantias jurídicas, proibição de residência em áreas rurais, restrição do acesso a escolas secundárias e ao ensino superior e perda de posições liberais”, contextualiza ela.
“Devido a isso, aumentou a pobreza entre os judeus e diminuíram suas perspectivas de sobrevivência. Paralelamente, ocorreram pogrons, isto é, assassinatos coletivos de judeus. Esses fatores certamente estavam por trás das intenções migratórias de grande parte da população afetada.”
Os países europeus enfrentavam ainda uma questão decorrente do avanço das máquinas que extinguia inúmeros trabalhos manuais. “Para enfrentar a crise, alguns governos e empresas começaram a estimular a emigração de seus concidadãos para regiões onde a modernização ainda não havia chegado”, complementa ela, lembrando que a ICA “juntou-se a esses empreendimentos”.
A atração, por sua vez, vinha porque o Brasil precisava de mão de obra, principalmente após a abolição do regime escravista, em vigor até 1888. “O governo brasileiro criou normas que favoreciam a vinda de imigrantes de países europeus. A imigração de agricultores para o sul do país foi fortemente estimulada, como forma de garantir a integração desse território ao país e pelo interesse no aumento da produção e comercialização agrícola”, explica Brumer.
Fé, rituais e educação
As narrativas memorialísticas de Frida Alexandr, como bem observou Zilberman, acabam demonstrando como aqueles colonos estavam preocupados com a instalação de três pilares muito caros ao judaísmo — porque eles seriam necessários para que essas pessoas tivessem no Brasil uma vida compatível com seus valores.
Logo no segundo capítulo, a autora descreveu como foi construído o templo. “O diretor da colônia […] convocou os colonos para uma reunião […]. Queria participar-lhes que em breve chegariam as últimas famílias de imigrantes, e que eles eram portadores de uma dádiva […]. Essa dádiva consistia numa Torá (os rolos sagrados que contém a cultura milenar dos judeus)”, relatou.
“Pediu aos colonos que se apressassem na construção de um templo. Os colonos exultaram com a boa notícia e puseram-se logo a trabalhar no erguimento de uma sinagoga”, disse ela.
No capítulo terceiro, Alexandr narrou como se deu a eleição do shoiched, aquele que seria responsável tanto pelo abate do gado e suprimento de carne kosher como também de praticar o ritual de circuncisão dos meninos recém-nascidos.
Ele acabaria sendo praticamente um rabino. “[…] tinha também tomado a si a santificação dos casamentos, a incumbência de circuncidar os varões recém-nascidos, bem como, por força da lei, promulgar o divórcio dos casais reconhecidamente incompatibilizados”, escreveu Alexandr.
O terceiro pilar fundamental foi a inauguração da escola, um espaço coletivo para as aulas, um professor contratado e a preocupação em ensinar, às crianças, a língua portuguesa. Frida Alexandr contou como foi marcante a chegada de Léon Back (1882-1965), um romeno que foi encarregado de lecionar português.
A autora descreveu a casa do professor como um local em que havia “assoalhos de madeira”, o que significava “para nós, crianças nascidas nas colônias não afeitas a nenhum conforto, o máximo do luxo”.
“[Ele] viera diretamente de uma universidade europeia para ensinar na escolinha rural de um minúsculo ponto perdido na imensidade deste país”, ressaltou Frida Alexandr.
“A administração da ICA se empenhava para a que a colônia Philippson fosse bem-sucedida. Assim, procurou evitar alguns equívocos ocorridos nas colônias agrícolas da Argentina”, diz Brumer.
A socióloga conta que Back “tinha formação em odontologia e havia estudado a língua alemã e o português”. “Para preparar-se para ir para a colônia, onde chegou em 1908, passou alguns meses em Portugal para aperfeiçoar-se na língua portuguesa”, afirma.
A escola instalada em Philippson era mista e ali também estudavam filhos de trabalhadores da estrada de ferro — eles viviam nas proximidades da colônia.
Por Edison Veiga