Em 2023, Donald Trump foi fortemente criticado por afirmar em um comício que os imigrantes que chegavam aos Estados Unidos ilegalmente estavam “envenenando o sangue” do país.
O ex-presidente e candidato na atual disputa pela Casa Branca chegou a ter suas palavras comparadas a de Adolf Hitler por seu então adversário, o democrata Joe Biden. Questionado em um programa de rádio sobre a declaração, Trump disse que não sabia que o ditador alemão havia dito algo semelhante.
Mais recentemente, ao comentar sobre a questão em um programa do canal de televisão Fox News, voltou a dizer que usa essa linguagem “porque nosso país está sendo envenenado”.
O ex-presidente também repetiu uma ideia que está presente em muitos de seus discursos e comícios: a de que os imigrantes que entram ilegalmente nos EUA são criminosos fugindo de prisões e instituições mentais que apenas aumentam as taxas de delinquência no país.
“Temos pessoas vindo de prisões e cadeias, assassinos de longa data, pessoas com sentenças que deveriam passar o resto de suas vidas cumprindo sentenças em alguma prisão em algum país do qual muitas pessoas nunca ouviram falar… Todos eles estão sendo soltos em nosso país.”
Essas e outras declarações de Donald Trump marcam uma das principais ideias que sustentam a sua campanha para as eleições presidenciais americanas: a noção de que a identidade nacional está sendo ameaçada pelos estrangeiros e deve ser defendida.
A política, denominada nativismo por acadêmicos e estudiosos do tema, está no cerne não apenas das propostas do republicano, mas também da direita radical na Europa e em outras partes do mundo.
No caso dos Estados Unidos, os nativistas defendem a ideia de que o país é essencialmente “cristão e branco, fundado com base em princípios judaico-cristãos”, conforme explicou à BBC News Brasil o historiador americano Matthew Dallek, da Universidade George Washington.
O que é nativismo?
A Enciclopédia Britannica define o termo como uma ideologia, política governamental ou postura política “que prioriza os interesses e o bem-estar dos nativos ou residentes de longa data de um determinado país em detrimento daqueles dos imigrantes, normalmente defendendo ou decretando restrições à imigração.”
David Magalhães, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e coordenador do Observatório da Extrema Direita, explica que se trata de “uma versão exclusivista do nacionalismo”.
A ideia de valorização da nação e defesa dos interesses nacionais surgiu no bojo da Revolução Francesa influenciada pelo ideário iluminista, mas iniciou uma transformação no final do século 19, segundo Magalhães.
“O nacionalismo como surge no século 19 prevê a união de uma certa população a partir de um conjunto de valores e de uma identidade comum”, diz. “Mas ele vai se transformando no final do século e se torna um nacionalismo com caráter mais estreito, reivindicando uma certa herança, inclusive em termos étnicos e raciais.”
De acordo com o especialista, a partir daí o nativismo passa a ser uma das agendas mais importantes da direita radical “no que se refere à ideia de defender a identidade nacional contra estrangeiros”.
“A rigor o conceito é a defesa de um tipo de identidade nacional que reconhece apenas aqueles que nasceram em determinado país como aqueles que são os pertencentes àquela identidade.”
Alessio Scopelliti, pesquisador da Universidade de Bristol e da Universidade de Milão, explica que, em geral, “partidos nativistas rejeitam sentimentos cosmopolitas e acreditam que os Estados devem ser habitados exclusivamente por membros de um único grupo étnico”.
“Eles também tendem a considerar o multiculturalismo como uma ameaça à herança nacional e tradições culturais – e por essa razão a sua preocupação principal é impedir o acesso de grupos minoritários ou, alternativamente, forçá-los a serem totalmente assimilados pela cultura nacional.”
Na prática, esse conceito pode ganhar contornos distintos, com teor mais religioso ou laico.
Segundo Scopelliti, há ainda uma relação muito estreita entre os partidos e políticos que defendem o nativismo e ideias racistas e xenofóbicas.
“Antes os partidos da direita radical eram estigmatizados pela maioria da população porque suas ideias eram consideradas racistas e xenofóbicas”, diz. “Mas hoje vivemos um processo de normalização desses partidos, em que as pessoas estão se acostumando com essas ideias e não há mais vergonha ou culpa de expressá-las como antes.”
O nativismo de Trump
Andrea Pirro, cientista político da Universidade de Bolonha, explica que os seguidores dessa idelogia tendem a acreditar que “todos os elementos considerados não-nativos de uma nação, sejam eles ideias ou pessoas, são ameaças fundamentais à homogeneidade do Estado”.
O especialista afirma, porém, que mesmo que muitos dos ditos ‘nativistas’ atuais sejam unidos pela grande oposição à imigração, suas atuações e ideias podem ganhar contornos diferentes a depender do contexto e país em que estejam.
“As direitas radicais não são inteiramente homogêneas e as diferenças dependem de especificidades do contexto em que cada uma delas opera”, diz.
No caso das ideias difundidas nos Estados Unidos hoje analistas identificam uma hostilidade especialmente em relação a imigrantes de países com maioria árabe ou mulçulmana e das Américas Central e do Sul.
“Donald Trump atribui todo tipo de acontecimentos horríveis a essas pessoas, afirmando que eles são responsáveis pelos crimes e pelo uso de drogas no país”, diz Matthew Dallek, historiador e estudioso da direita radical da Universidade George Washington, nos EUA.
Não há dados que sustentem a ideia de que um aumento de imigrantes impulsiona um aumento de crimes. Na realidade, assassinatos, outros tipos de crimes violentos e roubos de propriedade caíram em 2023, de acordo com estatísticas preliminares publicadas pelo FBI.
Mas Andrea Pirro explica que o nativismo e o discurso anti-imigração são centrais nas plataformas de campanha e governo de Trump desde 2016, especialmente quando se trata de engajar eleitores mais conservadores.
“Vemos uma versão radical e excludente do nacionalismo [nos EUA hoje]”, diz. “A oposição à imigração e a visão de que imigrantes não fazem parte do corpo da nação está muito arraigada na agenda política de Trump e, claro, no nativismo.”
Promessas como a construção de um muro na fronteira americana com o México ou a deportação de 20 milhões de pessoas que, segundo Trump, vivem ilegalmente no país, fazem parte de uma mentalidade nativista, dizem os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
Outro exemplo é o decreto-executivo assinado por Trump em 2017, quando era presidente, para barrar a entrada de pessoas de seis países de maioria muçulmana, que ele já prometeu reinstituir se for reeleito.
Falando sobre o tema em um comício em outubro do ano passado, o republicano disse que na sua Presidência “a civilização e os valores judaico-cristãos” foram prioridade – e que voltariam a ser se retornar à Casa Branca.
“Os nativistas compartilham a ideia de que os Estados Unidos são fundamentalmente uma nação cristã e branca fundada com base em princípios judaico-cristãos”, diz Matthew Dallek.
E apesar de Donald Trump não ser o tipo de político orientado pela religião, sua campanha se beneficia da ideia, explica o historiador.
“Trump tem feito ressurgir o tipo de nativismo presente nas décadas de 1920 e 1930 e que tem raízes profundas nos Estados Unidos”, diz o professor da Universidade George Washington, em referência ao período em que a hostilidade contra imigrantes do sul e leste da Europa, da Ásia e do México levou a implementação de legislações restritivas contra a imigração.
O próprio lema da campanha Donald Trump desde 2016, “Make America Great Again” (Tornar a América Grande Novamente, em tradução livre) é visto por estudiosos do tema como uma alusão à ideia do nativismo e da necessidade de recuperar os EUA das mãos dos estrangeiros.
Originalmente usada por Ronald Reagan como slogan em sua campanha presidencial de 1980 (“Let’s Make America Great Again” – Vamos Tornar a América Grande Novamente), a releitura da frase teve rápida adesão entre os apoiadores de Trump.
Atualmente, o lema faz parte do discurso que defende a ideia de um americano “verdadeiro”, anglo-saxão, protestante e branco, avaliou Lucas Leite, doutor em Relações Internacionais e professor da mesma disciplina na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), em entrevista à BBC Brasil.
“Essa identidade representava a grandeza dos Estados Unidos e foi diluída por minorias e imigrantes. O Maga, portanto, tem essa capacidade de criar uma identidade forte e facilitar a comunicação e a identificação com a figura de Trump”, diz Leite.
Uma ‘visão secular’
Do outro lado do Atlântico, o nativismo voltou a chamar a atenção durante a campanha para a Assembleia Nacional francesa em junho.
O partido Reagrupamento Nacional, dos políticos de direita radical Marine Le Pen e Jordan Bardella, se destacou nas pesquisas de intenção de voto e alcançou uma vitória histórica no primeiro turno do pleito.
A legenda acabou em terceiro lugar após o segundo turno, atrás da coligação de partidos de esquerda e da coligação de centro-direita do presidente francês Emmanuel Macron, a Ensemble! (Juntos), mas fez suas ideias ressoar em toda a França.
“Sinto, como milhões de cidadãos franceses, a dor de me tornar estrangeiro em meu próprio país”, repetiu Bardella em comícios por todo o país.
Na realidade francesa, especialistas identificam uma espécie de nativismo que está vinculada a uma tradição secular republicana e que leva em consideração a ideia de laicidade no país.
O princípio constitucional implica a separação do Estado e das organizações religiosas e exige a igualdade de todos perante a lei, independentemente de suas crenças ou convicções.
O conceito defende a liberdade de acreditar ou não em uma religião, garantindo o livre exercício de todos os cultos, o que também implica que ninguém pode ser obrigado a respeitar dogmas ou normas religiosas.
Segundo David Magalhães, Marine Le Pen e Jordan Bardella usam esses conceitos para sustentar a ideia de que imigrantes religiosos, especialmente os muçulmanos, ameaçam a tradição secular francesa.
“Defendamos o secularismo contra os seus verdadeiros inimigos, não os presépios de Natal, mas os pregadores islâmicos”, escreveu Jordan Bardella em um artigo publicado no jornal Le Figaro em 2023.
“Quando estivermos no comando, os navios de imigrantes geridos pela máfia dos traficantes de pessoas não poderão atracar nossos portos franceses”, disse em outra ocasião. “A vocação do nosso país não é ser o hotel do mundo.”
Mas para Alessio Scopelliti, a defesa da tradição secular pelo Reagrupamento Nacional – e por outros partidos que se apoiam em concepções semelhantes – é muitas vezes usada como “justificativa” para políticas e propostas anti-muçulmanos.
“O nativismo francês é muito particular por conta da forma como a integração social e assimilação [dos imigrantes] são colocadas: indivíduos que são ou aspiram ser cidadãos franceses precisam renunciar a qualquer outra identidade”, diz.
O Reagrupamento Nacional, que antes se chamava Frente Nacional, nasceu em 1972 e ficou marcado por seu passado racista e antissemita.
Jean-Marie Le Pen, pai de Marine, foi o primeiro presidente do partido da direita radical e foi condenado múltiplas vezes por comentários xenofóbicos, antissemitas e homofóbicos.
Marine Le Pe também já foi acusada de xenofobia e islamofobia em diversas ocasiões. Ela, porém, rejeita essas acusações.
Uma outra espécie de nativismo secular está presente na Holanda e nas ideias defendidas por Geert Wilders, do Partido para a Liberdade, diz David Magalhães.
O coordenador do Observatório da Extrema Direita explica que, assim como na França, os holandeses têm uma longa tradição secular e laica.
E ideia propagada por ali também é muito semelhante: a de que a Holanda está cultural e socioeconomicamente ameaçada pela imigração e que problemas no sistema de saúde, no mercado imobiliário e na segurança pública estão intimamente ligados aos recém-chegados.
“Deus, pátria e família”
No outro oposto na Europa está a Espanha, onde analistas identificam o crescimento nos últimos anos da defesa da identidade nacional a partir de um caráter religioso.
Esse nativismo, presente especialmente no discurso do partido de direita radical Vox, está enraizado em uma tradição católica “que de certa maneira relaciona a identidade nacional com uma herança cristã bastante remota”, explica David Magalhães.
Essa ideia se traduz na defesa dos valores tradicionais e da família tradicional espanhola e na proteção da identidade nacional. Nesse caso não só contra a imigração, mas também contra movimentos separatistas, que são vistos como ameaças internas.
O Vox é hoje a terceira força política na Espanha e cresceu em porcentagem e em votos na última eleição para o Parlamento Europeu.
Seus integrantes costumam abordar com frequência pautas de costumes e temas que também aparecem em discursos de figuras cristãs locais, como o aborto e a comunidade LGBTQ+.
Segundo Alessio Scopelliti, algo um pouco semelhante acontece na Itália, com partidos como a Liga, de Matteo Salvini, e o Irmãos de Itália, de Giorgia Meloni, adotando discursos considerados nativistas.
Durante a campanha eleitoral que levou à sua eleição em 2022, Meloni recuperou um dos lemas do ditador Benito Mussolini, “Deus, pátria e família”, fez campanha contra os direitos da comunidade LGBTQ+ e alertou repetidamente contra os migrantes muçulmanos.
“Sim à família natural, não ao lobby LGBT. Sim à identidade sexual, não à ideologia de gênero. Sim à cultura e à vida, não ao abismo da morte, não à violência do Islã. Sim às fronteiras mais seguras, não à imigração em massa”, disse em um discurso durante um evento organizado pelo Vox da Espanha.
Segundo os analistas, o nativismo também está presente na ideologia de partidos como o Fidesz – União Cívica Húngara, de Viktor Obán, da Hungria, o Alternativa para a Alemanha (AfD), da Alemanha, e o Chega, de Portugal.
No caso alemão, há cada vez mais uma preocupação em torno do crescimento da AfD, sua retórica extrema em relação aos imigrantes e associações ao nazismo.
Protestos contra a legenda explodiram no início do ano, com muitos alemães pedindo que o partido fosse banido após relatos de uma reunião envolvendo diversos políticos locais em que a deportação em massa de imigrantes teria sido discutida.
O AfD também usa uma retórica semelhante à de Trump quando associa aumento da imigração a crescimento da criminalidade. Uma das lideranças do partido chegou, inclusive, a sugerir que a polícia fronteiriça atirasse em refugiados que entram ilegalmente no país.
Oficiais deveriam “usar armas de fogo se necessário”, disse Frauke Petry em 2016.
O partido também foi expulso do grupo político de direita Identidade e Democracia no Parlamento Europeu depois que Maximilian Krah, eurodeputado e principal candidato da Alternativa para a Alemanha nas eleições para a casa, disse que nem todos os integrantes da SS nazista eram criminosos.
Também faz parte da ideologia que move os protestos organizados pela direita radical no Reino Unido nas últimas semanas.
Os distúrbios, que ocorreram na capital Londres e em cidades como Hull, Liverpool, Bristol, Manchester, Stoke-on-Trent, Blackpool e Belfast, são marcados pelas manifestações anti-imigração, com casos de insultos islamofóbicos e enfrentamento com contra-manifestantes e policiais.
Na política britânica, os ideias nativistas aparecem no discurso do parlamentar Nigel Farage, fundador do partido Reform UK e uma das figuras que impulsionaram a campanha pelo Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia (UE).
“O Brexit foi motivado por muitas demandas, mas a questão da imigração e o sentimento nativista foram definitivamente parte importante”, diz Matthew Dallek.
Fora da Europa e dos Estados Unidos, especialistas veem traços nas ideias defendidas por Narendra Modi, primeiro-ministro da Índia.
Modi é a principal figura do Partido Bharatiya Janata (BJP), cuja principal bandeira é o nacionalismo “linha dura” pautado pela “hindutva” – uma ideologia que defende que a Índia pertenceria aos hindus e que suas crenças deveriam se sobrepor às de cristãos ou muçulmanos (que também ocupam o território em menor escala há séculos).
“Até mesmo no Brasil, o [ex-presidente Jair] Bolsonaro também adotou esse tipo de narrativa”, diz Scopelliti.