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Segunda-feira, Novembro 25, 2024

Casa dos Estudantes do Império: berço de líderes africanos

Criada durante a ditadura salazarista, a Casa dos Estudantes do Império devia apoiar e controlar estudantes das colónias. Não conseguiu o controlo e a Casa teve um papel fundamental para as lutas de independência.

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FONTE:DW

Quem passa hoje pela Avenida Duque D’Ávila, nº 23, na esquina com a Rua Dona Estefânia, na zona das Avenidas Novas no coração moderno de Lisboa, não se apercebe à primeira vista que aqui se situou a Casa dos Estudantes do Império (CEI). O edifício foi totalmente renovado e pintado de amarelo – e quase ninguém conhece a função que o prédio teve entre 1944 e 1965.

Alguns transeuntes interrogados pela reportagem da DW África não sabiam que ali funcionou a Casa dos Estudantes do Império. Só quando atraídas a ler os dizeres na placa colocada no pavimento se aperceberam da história especial do edifício.

Associação de jovens dos territórios ultramarinos de Portugal

A Casa dos Estudantes do Império foi uma associação de jovens dos territórios ultramarinos a estudar na metrópole. Após o início não oficializado em 1943, foi oficialmente fundada em 1944, por proposta do então ministro das Colónias, Vieira Machado.

Mas a Casa não existiu apenas em Lisboa, afirma o historiador Álvaro Mateus: “A Casa tinha uma sede em Lisboa e duas delegações em Coimbra. Em Lisboa tinha, digamos, um posto médico, a cantina e tinha um lar de estudantes que até aumentou – nos últimos anos já tinha pelo menos duas dezenas de estudantes”, explica.

Grupos subversivos

Como precisa Inocência Mata, professora universitária, estudiosa das literaturas africanas de língua portuguesa, tratava-se de um espaço aberto a todos os estudantes, do Minho a Timor. “Qualquer estudante podia ser da Casa”, recorda-se. “Realmente a Casa não era um lugar fechado nesse sentido. Ora, dentro da Casa constituíram grupos bastante subversivos. Nem todos os estudantes pertenciam a esse grupo. Havia portugueses também, não eram só africanos”.

Na primeira fase a partir da fundação em 1944, os jovens negros que se aproximaram da Casa dos Estudantes do Império para discutir a africanidade foram corridos, como explica o médico são-tomense Tomás Medeiros. Lembra quem, no início, mais frequentava a Casa: “Essencialmente estudantes brancos, vindos de Moçambique, que eram a maioria, vindos de Angola, também em maioria, poucos cabo-verdianos que se isolavam, guineenses em número residual, são-tomenses que viviam na Casa da tia Andreza”, conta Medeiros.

O Estado Novo de Portugal

Segundo Medeiros, defendiam-se na Casa os ideais coloniais dentro da ideologia do Estado Novo português, que foi fundado por António de Oliveira Salazar em 1933 e derrubado pela revolução do 25 de Abril de 1974. A Mocidade Portuguesa, a organização juvenil do Estado Novo, teve um papel especial, diz o médico são-tomense Tomás Medeiros: “A Casa era correia de transmissão da Mocidade Portuguesa junto da juventude africana, de tal forma que ela fornece um presidente da Câmara, Canto e Castro, e fornece também o Governador Geral de Angola”.

Estrutura crítica a Salazar e ao colonialismo

O regime do Estado Novo criou a Casa dos Estudantes do Império com o objetivo de fortalecer a mentalidade imperial e o sentimento da portugalidade entre os estudantes das colónias. No entanto, desde cedo, a Casa despertou neles uma consciência crítica sobre a ditadura e o sistema colonial, mas também a vontade de descobrir e valorizar as culturas dos povos colonizados.

Assim, pouco a pouco, a orientação ideológica dos estudantes da Casa mudou de uma posição a favor do Estado Novo à luta contra o governo fascista português.

Terá contribuído para isso o surgimento do Centro de Estudos Africanos, de acordo com Inocência Mata: “O Centro de Estudos Africanos era uma estrutura que nasceu dos contatos dentro da Casa dos Estudantes do Império, mas funcionava na casa de uma das tias, na altura colega Alda Espírito Santo, na rua Actor Vale, onde vivia a tia Andreza. Desse Centro de Estudos Africanos obviamente que nem todos fizeram parte porque era uma estrutura fechada precisamente por causa da PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado]”, explica.

 - portal de angola
A CEI foi completamente reformada Apenas a placa de pedra lembra os tempos de Casa de Estudantes vindos das ex colónias africanas Foto João Carlos

Berço do nacionalismo das ex-colónias

A Casa viria a ser assim o berço em Portugal do nacionalismo das ex-colónias. Por ela passaram muitas figuras da resistência. Entre outros, muitos dos nomes já conhecidos viriam a assumir importantes responsabilidades na luta anticolonial e de libertação dos antigos territórios em África, como Amílcar Cabral, o mais conhecido defensor da independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, e representantes conhecidos do MPLA (hoje partido no poder em Angola), como o ex-secretário geral do partido, Lúcio Lara, e o primeiro presidente do país, Agostinho Neto.

De Moçambique, passou pela CEI Marcelino dos Santos, membro fundador da FRELIMO (partido no poder) e primeiro ministro da Planificação e Desenvolvimento do país.

De Amílcar Cabral a Agostinho Neto

O historiador Álvaro Mateus, que foi membro do Conselho Fiscal da Casa dos Estudantes do Império entre 1960 e 1961, lembra-se de um artigo na revista Mensagem, o boletim mensal da Casa: “Por exemplo, Amílcar Cabral, no nº 11 da revista Mensagem de 1949, ele (sic) publica um artigo com o pseudónimo de Arlindo António, que tem por título Hoje e Amanhã, em que diz o seguinte: ‘Do caos surgirá um mundo novo e melhor, o que dignificará o homem preto ou branco, vermelho ou amarelo'”, lembra Mateus.

Segundo o historiador, “Agostinho Neto, em 1949, é secretário da direção da delegação de Coimbra da Casa dos Estudantes do Império. O Marcelino dos Santos, de Moçambique, é em 1950 e 1951, secretário da seção de Moçambique e delegado à direção geral da CEI. Lúcio Lara, em 1952, é presidente da delegação de Coimbra da Casa. Está a ver, quer dizer gerações inteiras que [por lá] passam”.

Formação de líderesda luta pela descolonização

Para Adelino Torres, professor catedrático na Universidade Técnica e Lusófona de Lisboa, que passou pouco tempo pela Casa, a formação de líderes da luta pela independência dos países de língua portuguesa foi um processo inevitável, “porque mais cedo ou mais tarde isso tinha que acontecer. Foi uma das poucas coisas que o Estado Novo, com outra intenção, fez”, constata Torres.

“Deu resultado negativo para o Estado Novo porque agregou, mas ao mesmo tempo foi vantajoso para todos os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). Porque os futuros líderes encontraram-se primeiramente e em segundo lugar porque houve ali um movimento de mobilização e de estímulo recíproco que foi muito importante e que marcou”, avalia.

Influência comunista e instrumentos para as independências

Ao perceber que havia estudantes simultaneamente a fazer política de oposição, o governo de Portugal deixa de homologar as direções da Casa. Durante oito anos, a partir de 1953, a Casa funcionou com comissões administrativas.

Em 1960, a CEI tinha no total 600 sócios. Mas, no ano seguinte, fogem cem estudantes africanos da Casa para reforçar as direções dos movimentos de libertação das colónias africanas.

A fuga era um sinal de contestação: “Era um período conturbado e interessante porque era um período em que nós queríamos aprender e fazer coisas. E encontrámos um ambiente bom em Portugal, que era o ambiente aceso da luta contra o fascismo”, lembra o médico são-tomense Tomás Medeiros.

Aprender com o Partido Comunista Português – PCP

“Naquela altura, costuma-se dizer, ou estás comigo ou estás contra. Ou estava-se com o regime ou estava-se com o Partido Comunista”, continua Medeiros. “Mesmo não estando no Partido Comunista, a influência era grande e aprendemos muita coisa com os comunistas. Os livros que devíamos ler, a maneira de organização, a estrutura do partido, tudo isso aprendemos com o PCP não sendo militantes”.

Ainda de acordo com Medeiros, a Casa muniu os quadros africanos das colónias de instrumentos essenciais para a condução dos processos que culminaram com as independências nos anos 70. “Começámos a interessar-nos por tudo que se passasse pelo mundo negro, que não conhecíamos, das Américas Latina e do Norte. Isso fez com que criássemos uma mentalidade muito própria”, explica.

“Éramos todos amigos, éramos todos pessoas interessadas em querer encontrar uma solução para o nosso futuro. Somos africanos, mas somos dominados, como sair desta situação? E [com isso], tornámos pessoas disponíveis para um processo que conduzisse à fase da afirmação da luta pela independência nacional”, afirma.

CEI fecha as portas

Mas o espírito da Casa foi-se esmorecendo com o tempo e a PIDE , a polícia política do regime salazarista, veio a encerrá-la em setembro de 1965. Depois disso, Manuel Ferreira, estudioso das literaturas africanas de expressão portuguesa, compilou os vários textos da revista Mensagem, publicados em dois volumes, os quais testemunham a força do movimento cultural da Casa dos Estudantes do Império.

Dez anos depois do encerramento da Casa dos Estudantes do Império, nasceram os países de língua portuguesa em África, os PALOP.

Restauro do edifício da Casa

O edifício da Casa dos Estudantes do Império foi restaurado e preservado por fora, mas hoje já não é igual o seu interior, abrigando atualmente serviços e áreas residenciais.

Como marco desse período, em 1992, durante o mandato do então edil Jorge Sampaio (ex-presidente de Portugal e atual secretário geral da Aliança das Civilizações, iniciativa das Nações Unidas), a Câmara Municipal de Lisboa mandou embutir no pavimento frente ao edifício uma placa evocativa em homenagem à Casa dos Estudantes do Império para que não se perca completamente a memória deste lugar histórico da luta pela independência dos países africanos.

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