Antes mesmo de tomar posse, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já havia anunciado sua intenção de escolher a Argentina como seu primeiro destino oficial no exterior.
Lula deve desembarcar em Buenos Aires na segunda-feira (23/1) para participar da reunião de cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) na terça-feira (24/1).
O Brasil voltou a integrar o bloco regional, composto por outros 32 países, após dois anos fora do grupo. Ele também tem encontro marcado com o presidente argentino, Alberto Fernández.
Em seguida, Lula parte para Montevidéu, onde também já estão programadas reuniões bilaterais com o presidente do Uruguai, Luis Alberto Lacalle Pou, e outras autoridades locais.
O que pode mudar com saída do Brasil de ‘aliança antiaborto’
O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, já anunciou que o petista deve visitar também, nos três primeiros meses de governo, Estados Unidos e China — os dois principais parceiros comerciais do Brasil atualmente.
Para a professora de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC Paulista (UFABC), Tatiana Berringer, as escolhas de destinos iniciais de um novo presidente costumam ser indicativas de sua estratégia de política externa.
“Quando Lula anuncia seus primeiros destinos, ele já expõe ao mundo o que planeja para seu governo”, diz.
“E é importante lembrar que o Lula já tem uma viagem para Portugal sendo preparada para abril, ou seja, a Europa também está na lista de prioridades, assim como a negociação do acordo entre União Europeia e Mercosul.”
A BBC News Brasil conversou com especialistas em Relações Internacionais para tentar entender quais as estratégias por trás das escolhas de primeiros destinos do novo governo.
Argentina
É tradição que o país vizinho seja escolhido por novos presidentes para as primeiras viagens oficiais. Mas, segundo analistas, a decisão de Lula de estrear sua agenda internacional com a ida à Argentina simboliza antes de tudo uma clara mudança de rumo nas relações entre as duas nações — e entre Brasil e América do Sul de forma geral.
“A escolha aponta para uma percepção do caráter estratégico das boas relações com os vizinhos e para a intenção de resgatar os laços — com a Argentina em especial, tendo em vista o relacionamento conflituoso entre o ex-presidente Jair Bolsonaro e [o presidente argentino] Alberto Fernández”, diz Tatiana Berringer.
A intenção de aprofundar os laços com os vizinhos já foi manifestada em diversos momentos por Lula e membros de sua equipe, e a própria decisão de reintegrar a Celac e usar a reunião de cúpula do grupo para uma viagem oficial à Argentina aponta nessa direção.
Há ainda um componente ideológico forte que aproxima os governos de Lula e Fernández. O argentino foi o primeiro chefe de Estado a visitar o petista após o anúncio do resultado das eleições, e a visita a Buenos Aires pode ser entendida também como uma retribuição da cortesia.
Segundo a professora da UFABC, existe a intenção de mostrar antagonismo em relação ao governo anterior, quando os laços foram prejudicados.
Para Feliciano Sá Guimarães, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) e diretor acadêmico do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), o Brasil tem muito a ganhar economicamente com a reaproximação, já que a Argentina está entre os três principais destinos das exportações nacionais.
“A sintonia entre Fernández e Lula pode dar mais força para negociar a fase final do acordo entre União Europeia e Mercosul”, diz.
“O fortalecimento dos laços também poderia impulsionar a reindustrialização mais uma vez, e, ao que parece, essa é uma das prioridades do governo Lula no momento de negociar os termos do acordo.”
Para os especialistas, os setores de exportações de manufaturados e outros produtos de grande valor agregado dependem especialmente de um Mercosul mais ativo para gerar crescimento econômico, empregos e desenvolvimento socioeconômico em geral.
“Se não houver uma relação funcional entre os presidentes brasileiro e argentino, nenhuma grande iniciativa regional ou coordenação ampla pode avançar”, afirma Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Especula-se ainda que Lula possa usar sua passagem por Buenos Aires e participação na reunião da Celac para reuniões bilaterais com outros líderes sul-americanos.
Segundo fontes do governo, o presidente deve se reunir com os líderes de Cuba, Miguel Díaz-Canel, e da Venezuela, Nicolás Maduro.
Uruguai
Assim como na viagem à Argentina, os especialistas consultados pela BBC News Brasil veem a visita ao Uruguai como parte de uma estratégia de reaproximação regional.
“Há sempre uma demanda por garantir a permanência do Uruguai — assim como a do Paraguai — no Mercosul, porque são países mais voltados para a exportação agrícola e podem ser mais ‘assediados’ pelas grandes potências”, diz Tatiana Berringer.
Segundo a especialista, manter a coesão do bloco é especialmente importante em um momento em que ambas as nações possuem governos mais conservadores, que não estão no mesmo espectro político do governo brasileiro atual.
“Uma visita ao Uruguai pode ser fundamental para manter essa coesão”, diz a professora da UFABC.
China e EUA
Já a escolha de China e Estados Unidos como prioridades simboliza a intenção do novo governo de manter relações produtivas e pragmáticas com ambas as potências, que atualmente travam uma disputa por influência política, econômica e militar em algumas regiões do globo.
“Estamos cada vez mais atuando em um mundo bipolar, causado pela piora da relação entre Pequim e Washington. Então demonstrar logo no início que o Brasil manterá relações produtivas com os dois polos de poder me parece uma estratégia muito sensata”, avalia Stuenkel, da FGV.
“Isso me parece uma estratégia para engajar os dois simultaneamente: sempre que um país apertar ou pressionar o Brasil por algo, corremos para o outro para tentar uma posição melhor”, afirma Sá Guimarães. “É uma política pendular.”
Para o diretor acadêmico do Cebri, esse estilo político pode abrir as portas para um intercâmbio interessante entre o Brasil de Lula e os Estados Unidos de Joe Biden.
Segundo Sá Guimarães, temas que podem beneficiar os dois lados são meio ambiente e defesa da democracia — pautas que ambos os presidentes têm demonstrado interesse em desenvolver.
“As relações do governo Bolsonaro com os Estados Unidos não eram das melhores desde que Joe Biden assumiu a Presidência. E é curioso notar que as últimas autoridades americanas que visitaram o Brasil antes do novo governo deram muita ênfase à necessidade de preservar a democracia e não questionar o resultado das eleições.”
Já quando se trata da China, existem setores poderosos absolutamente interessados na manutenção de boas relações com o país, como é o caso do agronegócio e da mineração.
Para Tulio Cariello, diretor de conteúdo e pesquisa do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), o afastamento entre Brasília e Pequim durante o governo de Jair Bolsonaro “foi uma ação ‘teatral’ de uma minoria do governo passado”, que não deve impactar em nada os laços daqui para frente.
“Minha percepção sobre a relação com a China é que agora teremos maior interesse da parte brasileira em explorar novas formas de cooperação, inclusive em organismos multilaterais em que os dois países estão presentes, além de maior boa vontade em relação a projetos de tecnologia e infraestrutura”, diz Cariello, que aposta também em uma ampliação do diálogo na área de meio ambiente.
“Até mesmo parte da indústria (aquela que compra insumos importados) busca intensificar as relações com a China.”
Davos
Apesar do calendário inicial de viagens cheio, Lula decidiu não comparecer ao Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça. O presidente preferiu enviar os ministros do Meio Ambiente, Marina Silva (Rede), e da Fazenda, Fernando Haddad (PT), para representá-lo.
Segundo interlocutores de seu governo, a ida à COP-27, a conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) que discute as mudanças climáticas, antes da posse, em novembro, já teria servido como uma boa interlocução com outras autoridades e uma vitrine para seus planos futuros.
Mas, para Sá Guimarães, a decisão pode ter sido equivocada. “Só participar da COP-27 e falar sobre o meio ambiente, que é a pedra angular da política externa dele, não é suficiente. Ele precisa entrar mais no palco internacional”, diz.
Segundo o professor da USP, a reunião poderia servir como um pontapé inicial para as discussões levantadas pelo G20, grupo do qual o Brasil será o próximo presidente pelo período de um ano, a partir de novembro de 2023.
“Presidir o G20 significa sediar centenas de encontros preparatórios para a reunião de cúpula que acontece em setembro de 2024. É uma grande oportunidade de política externa, mas também para as áreas de economia, finanças e meio ambiente.”
Por Julia Braun e Luis Barrucho