O mito de Cam, uma pequena passagem do Velho Testamento, ainda ressoa e influencia o Brasil que vai às urnas para decidir as eleições presidenciais em segundo turno, no dia 30 de outubro.
Para quem estuda o tema, uma interpretação do conto bíblico, que trata de uma maldição lançada por Noé contra seu próprio neto, incentiva um racismo de fundo religioso no país e a perseguição contra religiões de matriz africana, como candomblé e umbanda.
No contexto da eleição, a campanha do presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) tem tentado associar seu adversário, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), justamente a religiões afro-brasileiras, ao mal e aos demônios.
Católico, o petista também é acusado por bolsonaristas de ser “anticristão” e de querer fechar igrejas caso seja eleito – Lula sempre negou que fará isso, e costuma citar ter aprovado projetos favoráveis aos evangélicos quando era presidente, como o Dia do Evangélico (30 de novembro).
Em agosto, por exemplo, a primeira-dama Michelle Bolsonaro criticou Lula nas redes sociais por um vídeo em que o petista aparece sendo abençoado por mulheres de religiões afro.
“Isso pode, né? Eu falar de Deus não pode, né”, escreveu a primeira-dama, em resposta a uma publicação de uma vereadora da direita radical que falava que Lula “vendeu a alma” para vencer as eleições.
Bolsonaristas também têm associado a companheira de Lula, a socióloga Rosângela Lula da Silva (conhecida como Janja), às mesmas religiões.
Já Bolsonaro tem dito que as eleições são uma batalha do “bem contra o mal” — e ele seria o bem.
Nos últimos anos, fiéis da umbanda e do candomblé vêm sofrendo ataques de intolerância religiosa, como destruição de terreiros, agressões físicas e xingamentos.
Mas até chegar às eleições deste ano, essa história mítica da família de Noé passa pela escravidão, racismo, embranquecimento da população, igrejas evangélicas e pela chamada Bancada da Bíblia no Congresso. E ela começa no livro de Gênesis, que narra a criação do mundo.
Nudez e maldição
O Antigo Testamento conta que, depois do dilúvio, Deus procurou Noé para selar uma aliança. A destruição iria cessar e todos que saíssem da famosa arca — humanos e animais —, iriam repovoar a Terra.
Noé tinha três filhos: Jafé, Sem e Cam. Esse último também tinha um filho, Canaã, neto do patriarca.
Depois do dilúvio, Noé virou lavrador e plantou um vinhedo. Um dia, “bebendo do vinho, embriagou-se e achou-se nu dentro da sua tenda”, narra a Bíblia.
“Cam, pai de Canaã, viu a nudez de seu pai, e contou a seus dois irmãos que estavam fora. Então tomaram Sem e Jafé uma capa, puseram-na sobre os seus ombros e, andando virados para trás, cobriram a nudez de seu pai; tiveram virados os seus rostos, e não viram a nudez.”
Quando acordou, Noé ficou possesso ao descobrir que seu filho tinha visto sua nudez – algo considerado inaceitável. Então, resolveu amaldiçoar Canaã, tornando seu neto um servo. “Maldito seja Canaã, servo dos servos será de seus irmãos”, disse Noé.
Nessa povoação, Jafé teria levado à criação dos europeus, germânicos e arianos. Sem teria originado os povos semitas. Já povos da Ásia Oriental descenderiam de Cam.
Mas Canaã, filho de Cam amaldiçoado pelo avô, seria o pai dos etíopes, sudaneses, ganeses e ameríndios. Ou seja, os africanos seriam descendentes de Cam e de Canaã.
Para o pastor Kenner Terra, doutor em Ciências da Religião, o mito é uma “etiologia”, ou seja, “um texto que pretende explicar a razão de certos nomes ou práticas”.
“Essa tradição justificou, bem posteriormente, os conflitos entre o povo de Israel e Canaã, descendente de Cam”, explica.
Segundo texto do historiador Hiran Roedel, doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o destino dos três filhos de Noé e de seu neto Canaã ajudam a explicar por que essa narrativa foi usada por europeus e por ramos do cristianismo como justificativa para escravizar outros povos, principalmente indígenas e africanos.
“Quando as rotas das grandes navegações se estabelecem, dão-se em direção, para efeito de comércio, das terras que, segundo a Bíblia, haviam sido povoadas pelos descendentes de Cam, os amaldiçoados. Nesse sentido, eram povos que poderiam e deveriam ser subjugados, segundo o entendimento no texto sagrado”, escreve Roedel.
O historiador André Chevitarese, professor do Instituto de História da UFRJ, explica que o mito de Cam foi utilizado para pintar a África como “personificação do mal” por conta da “origem amaldiçoada de sua população” por conta dessa interpretação do mito bíblico.
“O continente passou a ser marcado como demoníaco, amaldiçoado por Deus e formado por pessoas mergulhadas no pecado. O uso simbólico desse mito inunda a cabeça das pessoas sem que elas se deem conta. Essa imagem é utilizada até hoje”, explica.
‘A redenção de Cam’
O mito de Cam também ajudou a ilustrar o projeto racista de embranquecimento da população brasileira depois do fim da escravidão em 1888, principalmente com a chegada de imigrantes europeus que substituíram a mão de obra escravizada.
Uma das mais famosas pinturas da época é A Redenção de Cam, do pintor espanhol Modesto Brocos, que viveu no Brasil por algumas décadas.
A tela, de 1895, mostra uma mulher idosa e negra erguendo as mãos e os olhos aos céus. Ao lado, há outra mulher mais jovem, provavelmente filha da idosa, de pele mais clara. Ela segura um bebê branco.
À direita há um homem também branco, que seria o marido e pai da criança, olhando para o filho com certa admiração.
Em entrevista ao Nexo Jornal em 2018, a historiadora e antropóloga Tatiana Lotierzo, autora do livro Contornos do (In)visível: Racismo e Estética na Pintura Brasileira (1850-1840), argumenta que as personagens da pintura representam as três gerações necessárias que supostamente tornariam o Brasil um país branco.
Nessa análise, a redenção dos “descendentes” de Cam e de Canaã seria sua extinção como pessoas negras.
Ou seja, o bebê da pintura, descendente da idosa negra, representaria esse embranquecimento. “O quadro de Brocos, ao apelar para a ideia de redenção, é sem dúvida uma tela racista”, disse a antropóloga.
“Uma das associações que aparecem com mais frequência na imprensa do período, em textos escritos por intelectuais renomados, como Olavo Bilac e Coelho Neto, é justamente a da morte como redenção, para as pessoas negras. São textos de muita violência, pois concebem que a extinção dessas pessoas, inclusive pela via do embranquecimento, é o caminho para a emancipação”, explicou Lotierzo.
Uso político
Mais recentemente, em 2011, o mito de Cam foi resgatado pelo pastor evangélico Marco Feliciano (PL) para dizer que a África é “amaldiçoada”. O religioso, que na época era deputado federal, foi eleito novamente para o cargo nas eleições deste ano.
“Africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato. O motivo da maldição é polêmica. Não sejam irresponsáveis twitters rsss”, escreveu o pastor e político.
Ele continuou: “Sobre o continente africano repousa a maldição do paganismo, ocultismo, misérias, doenças oriundas de lá: ebola, aids. Fome… Etc. Não tem nada de comentário racista. É um comentário teológico que está na Bíblia.”
Feliciano apagou a mensagem após ser questionado por jornalistas.
Na época, o pastor precisou se explicar ao Supremo Tribunal Federal (STF) após ser acusado de discriminação e preconceito de raça pela Procuradoria-Geral da República (PGR) – ele também respondeu por comentários homofóbicos.
Em sua defesa, afirmou que “a crença dos cristãos de os problemas e obstáculos não surgirem necessariamente de atos do governo e ou empresários, mas do Céu, ou seja, como se a humanidade expiasse por um carma, nascido no momento em que Noé amaldiçoou o descendente de Cam e toda sua descendência, representada por Canaã, o mais moço de seus filhos”.
Para o pastor Kenner Terra, embora o mito de Cam não seja mais tão utilizado “como instrumento de legitimação do racismo”, ele tem “potência simbólica e pode servir para discursos violentos.”
Já a pesquisadora Tayná Louise De Maria, doutoranda em História Comparada pela UFRJ, acredita que o mito se faz presente de maneira simbólica até na representação do mal dentro das igrejas e em publicações.
“Em muitas igrejas e em revistas evangélicas, o mal é sempre representado pelas cores escuras”, disse em entrevista recente à BBC News Brasil.
Segundo ela, que estuda intolerância religiosa no Brasil, a imagem de uma” África amaldiçoada” ainda ressoa no imaginário de quem combate as religiões de matriz africana como uma vertente do mal.
Por causa disso, diz, a intolerância afeta os fiéis “do momento em que a pessoa coloca suas roupas religiosas até quando anda na rua.”
Intolerância religiosa
Assim como outras manifestações culturais da população negra, as religiões afro-brasileiras historicamente enfrentam perseguições e até criminalização.
Embora a Constituição de 1891, a primeira da República, garantisse a liberdade de culto, o Código Penal de 1890 estabelecia como crime, por exemplo, “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis e incuráveis.”
No Rio Janeiro, durante muito tempo o museu da Polícia Civil armazenava centenas de objetos relacionados ao candomblé e à umbanda, artefatos que eram confiscados no início do século passado em batidas policiais em terreiros. Recentemente, uma campanha de religiosos conseguiu recuperar esse acervo.
Nos últimos anos, casos de intolerância contra religiosos vêm se avolumando.
Segundo o Relatório Sobre Intolerância Religiosa no Brasil, produzido pelo Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (Ceap) e pelo Observatório das Liberdades Religiosa (OLR), apenas no Estado do Rio de Janeiro foram registrados 47 casos de intolerância contra religiões de matriz africana no ano passado.
Em 56% dos casos, aponta o relatório, o violador era “cristão evangélico”.
Há desde invasão e depredação de templos e terreiros a ameaças, mensagens preconceituosas em redes sociais, xingamentos a fiéis e até agressões.
Em um deles, narra o documento, uma sacerdotisa do candomblé e seus dois filhos, trajados de branco, foram agredidos por um motorista de aplicativo. Ele os expulsou do automóvel e arremessou seus objetos para fora, chamando os passageiros de “satanás”.
Para Denisson D’Angiles, sacerdote do Instituto Centro Espiritualista de Umbanda Estrela Guia, religiosos dessas vertentes são vistos como “obreiros do demônio”.
“Há uma tentativa de nos associar a uma espécie de pecado capital, como se fôssemos inimigos a serem combatidos. Todos os dias somos xingados e questionados porque usamos nossa indumentária branca, todos os dias preciso me explicar para as pessoas”, diz.
Já o babalaô Ivanir dos Santos, professor da pós-graduação em História Comparada da UFRJ, acredita que o discurso preconceituoso de autoridades e políticos influencia diretamente no cotidiano dos religiosos que precisam enfrentar a intolerância.
“Em um país racista, o discurso está se transformando em ações práticas contra terreiros e religiosos. Ao invés de falarem de questões sociais, da fome, do desemprego, estão utilizando as religiões com objetivos políticos e econômicos”, diz.
O babalaô, que mora no morro da Mangueira, no Rio de Janeiro, diz que a convivência com os evangélicos na região tem sido respeitosa, embora o diálogo “não seja muito fácil”.
“Na verdade, quando a gente pensa em violência, os evangélicos são os que mais sofrem perdas. Muitos evangélicos, inclusive crianças evangélicas, são mortos em situações de violência. A bala perdida não sabe se você toca atabaque ou lê a Bíblia, mas sabe que você é preto e pobre”, diz.
Por Leandro Machado