Rafael Marques, jornalista de investigação angolano mais premiado a nível internacional, acaba de lançar, em livro, o que apurou sobre o «incidente mortífero» ocorrido a 30 de Janeiro deste ano (2021) em Cafunfo, Lunda-Norte, e diverge em dados com o Governo e com a UNITA.
Em entrevista ao Novo Jornal, o escriba, que desvaloriza as críticas que lhe têm sido feitas, refere não ser um activista de ocasião.
Entre outras coisas, considerou haver quem pretenda «escamotear» os factos que provocaram as «matanças» em Cafunfo e sublinhou que o Movimento Protectorado Português Lunda-Côkwe (MPPLT) não tem legitimidade de reclamar autonomia do Leste do País.
Quanto tempo levou para concluir o trabalho sobre «Miséria e Magia – Revolta em Cafunfo»?
É um trabalho de investigação que levou mais de seis meses e 40 dias passados em Cafunfo.
Qual foi a metodologia usada para chegar ao resultado agora transformado em livro?
Entrevistámos mais de 100 participantes e testemunhas do trágico acontecimento. Muitos colaboraram na reconstituição dos factos ocorridos antes e durante o percurso da marcha, assim como do que se passou a seguir à marcha. Ao cruzarmos as informações fornecidas por esta centena de pessoas, pudemos perceber, com rigor, a factualidade dos acontecimentos. Visitámos vários feridos e familiares de manifestantes mortos, e procurámos, nos bairros mais afectados, informações sobre mais vítimas.
As autoridades alegam ter havido seis mortos, em consequência do incidente. A UNITA e outras entidades registaram mais de duas dezenas. Na sua investigação, quantos apurou ter havido?
Da informação recolhida, contámos 13 mortos (incluindo os que constam da lista oficial apresentada). Recolhemos depoimentos de familiares e de participantes que testemunharam as mortes de pessoas que não constavam da lista oficial das autoridades ou que assistiram à recuperação de corpos.
Há activistas que consideram que o relatório que acaba de publicar visa isentar o Estado do que se terá passado em Cafunfo. Como olha para essa acusação?
Trabalho para o bem comum dos angolanos. Passei toda uma vida a ser insultado e vilipendiado por agir sempre de acordo com a minha consciência, enquanto filho desta Pátria. Portanto, não respondo a insinuações nem alimento confusões. Não sou activista de ocasião. Interessa-me expor a verdade. Ora, na maioria das vezes, a verdade é inconveniente para os poderosos, mas, outras vezes, pode também não agradar a outros segmentos da população.
Tenho feito um trabalho aturado, consistente e permanente em prol dos direitos humanos e da melhoria das condições de vida nas Lundas. Sempre lutei para falarmos de factos, e, mais uma vez, é isso que faço neste relatório.
Informações postas a circular indicam que os membros do Movimento do Protectorado pretendiam apenas realizar uma manifestação pacífica, um direito que se assiste a todos os cidadãos.
Há alguns factos que merecem reflexão pública. A manifestação de 30 de Janeiro, promovida pelo Movimento do Protectorado Português Lunda-Côkwé (MPPLT), pretendia exigir a autonomia de cerca de metade do território angolano (Kuando-Kubango, Lunda-Norte, Lunda-Sul e Moxico) ou exigir a independência, com base em acordos pura e simplesmente fictícios.
Está a dizer que os membros do MPPLT não têm legitimidade para reivindicar a autonomia destas zonas?
Um destes acordos foi estabelecido com o município de Capenda Camulenda, sendo assinado a 20 de Setembro de 1886 por um simples comerciante português em representação da parte colonial. O Movimento do Protectorado não luta pelos direitos das comunidades locais, nem pela melhoria das suas condições de vida, mas, sim, por um total absurdo.
O senhor acredita haver, neste caso em concreto, tendência para se ocultar o que, efectivamente, se passou?
Mais de 200 manifestantes da linha da frente passaram perto de três dias a realizar rituais de magia e jejum, nas margens do Rio Kandanje, em preparação para se tornarem imunes às balas. Alguns acreditavam piamente “voar” diante do perigo. Muitos manifestantes se muniram de objectos corto-contundentes, como catanas, poku-ya-muelas (espadas), canjavites, etc. Já na Rua dos Comandantes, o manifestante que liderava o grupo, Mutunda Catxambi, estava com uma arma semiautomática “Galil”, capturada à PIR, e fez disparos.
Há quem queira ocultar a verdade, porque não interessa aos desígnios da intolerância que se pretende promover no País, por escassez de ideias alternativas para o bem-comum.
O relatório é muito explícito e documenta em pormenor as ideias absurdas que dominaram os manifestantes, as quais resultam de um problema crónico que o Governo angolano teima em não resolver: a falta de instrução e a ausência de um sistema educativo indispensável para que os cidadãos sejam capazes de se organizar e lutar eficazmente pelos seus direitos.