A usina hidrelétrica de Ilha Solteira, maior do Sudeste em potência instalada, chegou neste domingo à beira do colapso.
Após duas semanas de quedas vertiginosas, o reservatório da usina, localizada na divisa entre São Paulo e Mato Grosso do Sul, atingiu 1,45%, ameaçando zerar o volume útil ainda esta semana, comprometendo a geração de energia elétrica.
Terceira maior hidrelétrica em operação no país, Ilha Solteira tem capacidade de gerar 3.444 MW com 20 unidades geradoras, o suficiente para abastecer o Rio de Janeiro e Recife, aproximadamente. Desde Agosto, no entanto, vinha gerando cerca de 30% disso de forma a preservar a água do reservatório.
A queda brusca observada em uma das maiores usinas do mundo liga “o alarme do alarme” da crise hídrica, na avaliação do diretor-executivo do Instituto Escolhas, Sérgio Leitão. “Desde que anunciou a criação do comitê de crise, em junho, o Governo Federal não encarou o problema, e praticamente não tomou medidas”, afirma Leitão, que critica o comitê comandado pelo Ministério de Minas e Energia.
“O único acerto do governo de 2001, quando houve o último apagão, foi montar um comitê comandado pela Casa Civil, única Pasta capaz de dialogar e cobrar de outros Ministérios; como o ministro de Minas e Energia pode exigir qualquer mudança do ministério mais poderoso do governo, da Agricultura? Não há gestão das águas do país”, comenta.
Para o ex-diretor-presidente da Ana (Agência Nacional de Águas) Vicente Andreu, a operação que resultou na redução rápida e brutal da represa é “estranhíssima” e revela a desorganização e falta de transparência no gerenciamento da crise.
“O comitê de monitoramento do setor elétrico vem gerando esta crise sem metas e às escuras”, reclama o estatístico que dirigiu a agência de 2010 a 2014. “O ONS planejava chegar em novembro com Ilha Solteira na cota 319m, e assim de repente, em setembro, diminui para 323m, ou 1,45%, que é o mínimo operacional; é impossível saber qual o critério usado e qual será aplicado daqui para frente”.
A estatal chinesa CTG Brasil, concessionária de Ilha Solteira, afirma que apesar da cota de outorga ser 323m, a usina seria projetada para operar até o nível de 314 metros. Se considerar este nível, o volume correspondente seria de 57% do total do reservatório, segundo a empresa.
Mantido este nível, Ilha Solteira não deve encerrar a geração, passando a operar com fio d’água, ou seja, a mesma vazão que chega, é liberada. É o que avalia o ex-diretor do ONS Luiz Eduardo Barata.
“As usinas somente devem parar se chegarmos a níveis extremos; todo o sistema funciona como cascata, mas se essa cascata secar nas cabeceiras, abaixo também para”, diz o engenheiro com passagem por Furnas, Eletrobrás e Itaipu. Para ele, no entanto, a experiência dos responsáveis deve garantir o abastecimento até novembro, quando são esperadas as chuvas.
Em nota, o ONS (Operador Nacional do Sistema) afirma que a operação de usinas hidrelétricas com nível de armazenamento em torno de 10% é tecnicamente viável e não compromete a governabilidade hidráulica das bacias que compõem o SIN (Sistema Integrado Nacional). “Observa-se, no entanto, que a operação com valores muito baixos de armazenamento, inferiores a 10%, sempre requer atenção, tendo em vista as solicitações mecânicas a que a máquina é submetida”.
TRAGÉDIA ANUNCIADA E PLANEJADA
Com medidas pouco eficientes até meados de setembro, especialistas já consideram 2021 como ano perdido em relação ao combate à crise energética, avaliando que as medidas a serem tomadas poderão somente salvar 2022. Com a previsão do retorno do fenômeno La Niña, sobretudo entre Novembro e Janeiro, o país deve ter um verão pouco chuvoso, insuficiente para recarregar as represas já vazias.
“Ilha Solteira é apenas o reflexo de uma série de ações temerárias tomadas desde o ano passado”, afirma Ikaro Chaves, Diretor da Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras. “Desde 2013 que os verões são menos chuvosos e havia previsão de La Niña; o normal neste novo cenário seria guardar água e criar uma ‘poupança’ no período chuvoso, mas ao invés disso, os responsáveis continuaram bancando as hidrelétricas como se nada acontecesse e o resultado é ter de acionar todas as termelétricas, até as mais caras”.
Para Andreu, ex-presidente da Ana, o desperdício da ‘poupança hídrica’ ocorrido em 2021 não é novidade, mas prática recorrente desde 2014 e tocada com intenção de aumentar a receita dos agentes do setor elétrico com o aumento das tarifas com a política de bandeiras energéticas.
“O problema é que neste ano a estiagem veio mais forte do que esperavam, e saiu de controle; ainda assim entraram tardiamente na resolução do problema, sem estabelecer regras, e desobedecendo as poucas criadas”, reclama, mencionando a vazão das usinas Jupiá e Porto Primavera em níveis três vezes maior que o determinado.
Ele critica também a Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética (Creg), criada por meio de Medida Provisória em 28 de Junho e que não tem entre seus integrantes a ANA (Agência Nacional de Águas), que poderia regular, por exemplo, o consumo de água dos grandes produtores de commodities agrárias.
Em alguns municípios do Cerrado, até 90% do consumo de água vem do setor agrário.
Para Andreu, a crise até aquele momento não era hídrica, mas energética, já que em geral não havia falta de água para abastecimento. A reportagem do Yahoo! no Triângulo Mineiro mostrou que pequenos produtores sofrem com a falta de água subterrânea explorada pela irrigação de soja, cana e outras produções.
NA USINA DE TRÊS IRMÃOS, SITUAÇÃO É CRÍTICA
Outra usina em situação crítica é a de Três Irmãos, no noroeste paulista. Às margens do rio Tietê, seu reservatório tem atualmente pouco mais de 5% da capacidade útil.
Ilha Solteira e de Três Irmãos fazem parte do principal conjunto de hidrelétricas do país, entre as regiões Sudeste e Centro-Oeste, e que concentram 70% de toda a água armazenada do SIN.
Chaves defende um racionamento imediato para evitar uma crise ainda maior no ano passado. “Temos um paciente doente, e podemos dar a ele um remédio amargo, como o racionamento de 5%, ou interná-lo para amputar um membro, que é o que seria um racionamento de 20% no ano que vem. O cenário é desesperador, mas ninguém quer falar em racionamento porque isso leva a perder a eleição, como ocorreu com FHC”, avalia.
Para o diretor-geral do Instituto Escolhas, o governo Bolsonaro acabará marcada por apagar o país: “Não vai chover no verão, e no final o que teremos é falta de água de dia, e falta de luz à noite. Rumamos para a catástrofe”.
O QUE DIZ A CTG BRASIL?
“Em função da crise hídrica instalada no País, a CTG Brasil vem acolhendo, na sua integralidade, as determinações recebidas, cumprindo rigorosamente a legislação, procedimentos e normas do setor elétrico brasileiro, bem como a Política de Operação definida pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) para as usinas hidrelétricas sob sua concessão. A CTG Brasil também colabora com o ONS e demais instituições do setor.
Para manter a operação do Canal Pereira Barreto sem restrições, a cota mínima de operação da Usina Ilha Solteira pode chegar até 323,00 m. No entanto, em situação de escassez hídrica, as condições de operação da usina poderão ser revistas pelos órgãos competentes, podendo chegar no nível mínimo operativo previsto em projeto, que é de até a cota de 314,00 m. Nesta segunda-feira, dia 13/09/2021, a Usina Ilha Solteira está operando normalmente. O nível do reservatório encontra-se na cota de 323,08 m, correspondente a 1,45% do volume armazenado, quando consideramos o nível mínimo de 323,00 m estabelecido pelos órgãos reguladores. Se considerarmos o nível mínimo de projeto, cuja cota é 314,00 m, o nível de hoje corresponde a 57,82% do volume útil total do reservatório.
Vale reiterar que a Usina Ilha Solteira integra o Sistema Interligado Nacional (SIN), assim como as demais hidrelétricas do País, e tem a sua operação coordenada pelo ONS, conforme procedimentos aprovados pela Agência Nacional de Energia Hidrelétrica (ANEEL), tanto no que se refere à produção de energia, quanto ao controle do nível do reservatório.
A companhia reitera, ainda, seu compromisso com o meio ambiente, com as comunidades onde atua e o cumprimento das leis brasileiras.”