Apesar da retórica e alvoroços midiáticos, relações econômicas entre Brasil e China seguem em ritmo acelerado, favorecidas pelo liberalismo bolsonarista, diz especialista.
As relações entre Brasil e China estiveram no centro dos debates que culminaram na derrubada do ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, no início do mês.
Acusações de que o novo coronavírus seria um produto chinês e bate-boca pelo Twitter entre políticos brasileiros e autoridades diplomáticas de Pequim deram o tom do ano de 2020.
Apesar da retórica, no entanto, as relações econômicas entre Brasil e China durante o governo Bolsonaro seguem inalteradas, disse o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), em São Paulo, Giorgio Romano Schutte, à Sputnik Brasil.
“Há muito alvoroço”, disse Schutte. “Mas se você avaliar o comércio, investimentos e financiamentos chineses no Brasil, as relações estão inalteradas.”
Para ele, algumas políticas econômicas do governo Bolsonaro, como a privatização e liberalização de setores estratégicos, podem inclusive favorecer a presença da China no Brasil.
“O governo Bolsonaro é o melhor governo que a China poderia imaginar, já que a política ultraliberal vende muitos [ativos públicos] e garante acesso ampliado a países estrangeiros”, disse o professor. “Em qual outro lugar do mundo você pode fazer [investimentos] no setor elétrico e de transmissão, sem restrições, sem questionamentos?”, indagou Schutte.
A posição da China como o principal parceiro econômico do Brasil faz com que setores como o agronegócio demandem uma postura pragmática em relação a Pequim.
“Poucos lembram que, durante a campanha eleitoral, Bolsonaro fez uma viagem a Taiwan com seus filhos. Na ocasião, ele prometeu romper [as relações diplomáticas com a China] e criou um alvoroço”, disse Shchutte.
Após a posse, no entanto, o presidente “não fez absolutamente nada”, pressionado por ministros como o da Economia, Paulo Guedes, e da Agricultura, Teresa Cristina.
Avanço do 5G
A questão do uso da tecnologia chinesa para a Internet 5G é aparentemente um dos pontos contenciosos das relações entre Brasil e China.
O ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, teria inclusive acusado a senadora e presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, Kátia Abreu (PP-TO), de fazer lobby para a adoção do 5G chinês no Brasil.
A acusação gerou resposta da Advocacia do Senado Federal e selou a queda do ministro, apelidado de “ex-Ernesto” pela senadora durante entrevista ao programa Roda Viva.
Apesar do tumulto, a posição do Brasil em relação à recepção da tecnologia chinesa de 5G não é tão desfavorável a Pequim quanto parece, acredita Schutte.
“Se analisarmos bem, o vice-presidente da República, [general Hamilton] Mourão, chegou a visitar uma fábrica da Huawei na China e dizer que o Brasil não excluiria a empresa do processo [de licitação do 5G]”, notou o professor.
Porém, durante a campanha presidencial norte-americana, na qual o ex-presidente dos EUA, Donald Trump, tentava a reeleição “houve uma ofensiva gigantesca” para que países rejeitassem a tecnologia da Huawei.
“Nesse contexto, o [ex-secretário de Estado dos EUA, Mike] Pompeo vem ao Brasil […] e pressiona o Brasil a rejeitar o 5G, prometendo em troca financiamentos muito vagos”, relatou o professor.
Durante o período da campanha presidencial nos EUA, portanto, o Brasil teria endurecido seu discurso contra a Huawei e o 5G.
“Mas assim que o Trump perde as eleições tudo volta ao normal nessa questão do 5G”, disse o professor. “A China é principal parceira do Brasil, não tem o que dizer.”
Fragmentação
Outro fator do governo Bolsonaro que poderia favorecer a China é a crescente participação de estados e municípios na política externa.
Durante a pandemia, o estado de São Paulo fez gestões junto a empresas chinesas para obter vacinas contra a COVID-19.
“No caso da [vacina] CoronaVac, o contato foi entre uma empresa privada e o escritório de representação do estado de São Paulo na China”, contou Schutte. “Então não passou nem pelo Itamaraty, nem por Brasília ou por Pequim.”
“Na China, essa descentralização faz parte da política econômica internacional”, disse o especialista.
Segundo ele, “claro que tem um limite para a atuação desses atores [subnacionais], mas têm muitos processos que fogem ao controle do governo chinês”.
O Brasil também conta com cidades e estados que conduzem política externa “apesar de uma certa resistência por parte do Itamaraty”.
O governo Bolsonaro e a pandemia de COVID-19, no entanto, trouxeram esse assunto para o debate público.
“A questão da vacina é uma questão aonde a política externa se torna uma política prioritária, que envolve o cidadão comum e as eleições, e por isso todos estão de olho nesses eventos”, disse Schutte.
“Poucas vezes uma política externa […] teve efeito tão grande sobre a população comum”, notou.
No entanto, o especialista não acredita que os atritos retóricos com o governo Bolsonaro tenham levado a China a atrasar o envio de vacinas ou ingrediente farmacêutico ativo (IFA) para o Brasil.
“Ao contrário, Pequim inclusive se saiu muito bem dessa confusão, demonstrando que o Brasil depende muito da China”, concluiu.