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Domingo, Novembro 24, 2024

“Não se concebe que em 45 anos precisemos comprar água de injecções no estrangeiro”

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Euclides Sacomboio é docente no Instituto Superior de Ciências da Saúde (ISCISA) na Universidade Agostinho Neto e fala, nesta entrevista, da necessidade de uma reestruturação profunda para que haja melhoria do Sistema nacional de Saúde. mestre em Bioquímica e Biologia molecular e Phd em Ciências de Saúde, o especialista em vigilância epidemiológica diz que o sistema sanitário não evolui desde 1975 e questiona-se sobre as razões que levam a se importar, por exemplo, o algodão, gases, adesivos, zaragatoas.

A minha avaliação para o nosso sistema de saúde é ruim. Sente-se que o nosso sistema de saúde não evoluiu desde 1975 até aos dias de hoje. Todas as políticas implementadas após a Independência continuam a vigorar até ao momento e não houve mudanças estruturantes no Sistema Nacional de Saúde de Angola.

Com que fundamento faz esta avaliação?
Com o facto de que desde que somos um país independente, o nosso sistema de saúde continua a privilegiar a saúde curativa ao contrário da preventiva, a construção de unidades de cuidados terciários e secundário em vez de unidades primárias de saúde. Não promovemos a organização da hierarquia dos serviços de saúde, ao contrário estabelecemos o princípio de hierarquia na assistência em saúde, mas desconstruímos o processo.

Se um cidadão tiver malária, diarreia, tosse ou gripe leve e for atendido num posto ou centro de saúde, desde que tenha um bom atendimento, um diagnóstico de qualidade e um tratamento eficiente, ele precisaria apenas de um médico, um enfermeiro, um técnico de diagnóstico laboratorial e um farmacêutico que lhe forneça os medicamentos para tratamento domiciliar. Os custos desse atendimento não ultrapassariam valores superiores a 20 mil Kwanzas, porque o tratamento seria oral e em domicílio.

Os postos e centros de saúde não são para suprir essa necessidade?
Mas por causa da precariedade dos postos e centros de saúde, esse indivíduo procura o hospital, porque nesse caso já está grave, ele precisará de diagnóstico mais diferenciado, pois já tem complicações mais graves, então precisaria de médicos e enfermeiros clínicos gerais, médicos e enfermeiros especialistas, uma cama de hospital.

Para tal, teríamos funcionários de limpeza, segurança, cozinha, tratamento por via intravenosa ou intramuscular e alto tempo de internamento hospitalar, o que acarreta um custo diário que pode ultrapassar os 100 mil Kwanzas.

Então o Estado gasta muito mais dinheiro com a aposta em hospitais que são cuidados terciários do que se investisse em hospitais e centros de saúde que são cuidados primários e secundários e, por esse motivo, hoje temos os hospitais abarrotados de pacientes e colocados no chão do hospital, porque até agora temos dificuldade de organizar o nosso sistema de saúde.

Que políticas devem ser implementadas para a melhoria do Sistema Nacional de Saúde?
A primeira deve ser a democratização do próprio Ministério da Saúde. Parece que o Ministério da Saúde vive uma ditadura e, mesmo tendo os melhores profissionais aos seus serviços, as políticas não são com base técnica e científica.

Sempre passaram pelo Ministério da Saúde profissionais muito competentes, mas não houve até ao momento ousadia no Ministério da Saúde. Temos a ministra da Saúde e seus secretários de Estudo com alta competência e reconhecimento técnico científico, entretanto, o secretário de Estado para Saúde Pública que é PhD em Saúde Pública não tem autonomia para trocar informações com os jornalistas aquando da comunicação dos dados de Covid-19.

Mesmo sendo o mais indicado para falar dos factores associados à alta taxa de infecção, os problemas de diagnóstico, a dificuldade de controlar a doença, as altas taxas de mortalidade e muitos outros aspectos relacionados à saúde pública.

E me parece que nem é por orientação da ministra, até porque essa é a primeira ministra que deu um pouco mais de autonomia aos seus secretários de Estado em relação às gestões anteriores. Parece que há aí ordens superiores.

Há poucos dias se comemorou o Dia Mundial do Trabalhador de Saúde, como profissional de saúde como é que avalia as instalações construídas recentemente?
Mais parecem unidades de saúde com foco político e de autopromoção do que necessariamente com foco de melhorar as condições de atendimento em saúde. Se constroem unidades hospitalares de ponta, mas não se formam profissionais para manusear tais equipamentos.

Se constroem unidades hospitalares que não têm o número de médicos, enfermeiros e profissionais de diagnóstico e terapêutica que sejam capazes de prestar assistência médica e medicamentosa de qualidade. Em muitas unidades hospitalares temos várias alas que nem sequer são utilizadas ou são repassadas ao privado.

O que se precisa fazer para melhorar o nosso Sistema de Saúde?
É necessário que quem governa e dirige o Ministério da Saúde tenha mais ousadia, seja capaz de colocar em prática os conhecimentos técnicos para melhorar os programas e política de saúde. Por exemplo, o Programa Nacional de Luta Contra a SIDA, tuberculose, malária e outros programas são os mesmos desde que foram implementados pela primeira vez. Ou seja, estão completamente ultrapassados no tempo, no espaço e no lugar, já que a medicina não é estática, evolui periodicamente.
Estes programas precisam ser reestruturados e readequados o mais breve possível, senão essa luta será contínua e sem sucesso. É necessário que os programas e políticas de saúde sejam discutidos com a comunidade, se ouçam os especialistas e todas as outras pessoas que possam contribuir para que essas políticas e programas sejam mais eficientes, eficazes e aplicadas à realidade social do país.

“É inaceitável que precisemos comprar água destilada para injeções”

Na sua opinião, quais seriam as medidas imediatas para melhorar o Sistema Nacional de Saúde?
A primeira seria a reestruturação das políticas de programas de saúde, a segunda é a restruturação e apetrechamento das unidades de saúde, incluindo de equipamentos hospitalares, farmacológicos, materiais gastáveis e não gastáveis e recursos humanos suficiente e capacitados. O terceiro ponto é a democratização do Ministério da Saúde para que possa estar mais próximo ao cidadão, aos especialistas, as necessidades do povo e a realidade social que se vive, a nomeação de gestores comprometidos com o alto desempenho e não com o autoritarismo.

O saque do erário público e a política de mais ou menos fazer que, na verdade acabam sendo os maiores assassinos em tempo de paz. Quero aqui deixar claro que o gestor de saúde não pode ser apenas o médico, todos os outros profissionais de saúde são dignos de gestão dos serviços de saúde, inclusive a direcção do Ministério da Saúde.

O sistema de saúde não prevê isso?
Angola é um país com um sistema de saúde muito medicalizado e com desvalorização de outros profissionais o que acaba por contribuir para o fracasso do Sistema Nacional de Saúde.

Antes de se contratar empresas e especialistas no estrangeiro para prestar assessoria, serviços e outros procedimentos no nosso sistema de saúde, é necessário a abertura de editais e concursos, para verificar se não estamos buscando fora os profissionais que já temos aqui.

Muitos de nós estudamos com os profissionais que trazem do estrangeiro e fomos os melhores alunos nas salas onde eles estudaram.

E por último, mas não sendo o menos importante, acreditamos que em 45 anos de Independência não se concebe mais sermos totalmente dependentes do estrangeiro na industrialização farmacêutica. É inaceitável que ainda precisemos comprar água destilada para injecções e infusões, que é uma coisa que eu produzia num pequeno laboratório na universidade durante o mestrado, inclusive até água ultra-pura.

O mesmo acontece com materiais como o algodão…
Não se concebe que ainda importamos algodão, gases, adesivos, zaragatoa que é quase um cotonete só que com palito de plástico e muitos outros materiais de fácil produção e de baixo custo de industrialização.

Aliás, está mais do que na hora de o país incentivar a vinda de algumas indústrias farmacêuticas em Angola para produzirem localmente os produtos farmacêuticos mais consumidos no nosso país.

Não dá para continuarmos a depender dos outros em tudo, precisamos criar centros de investigação em saúde que resolvam os problemas reais de saúde do país, para reduzirmos a necessidade de buscar serviços médicos noutros países como tem sido frequente desde que nos conhecemos como país, ao ponto mesmo de quem governa sair do país, por meses, para receber tratamento no estrangeiro, isso parece um verdadeiro contrassenso.

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