Um telefonema do gabinete do ‘camarada’ Luther Rescova, entre às 11 e 13 horas de uma segunda-feira, em 2014: convite para integrar a equipa que iria liderar a revitalização da revista da JMPLA. Na altura, eu estava ao serviço do semanário SOL (jornal português) e ele primeiro secretário da “JOTA”. Declinei o convite.
Declinei o convite porque uma publicação dessas é essencialmente para propaganda do partido, promovendo as suas actividades, “vender o seu peixe”, no fundo também não deixa de ser assessoria, actividade incompatível com jornalismo, portanto, e eu era o principal jornalista da editoria de política.
Ser dessa revista implicaria colocar no bolso a isenção e imparcialidade. Quanto a isso, tive sempre um princípio: se tiver que estar assessor, terei que dar uma pausa no jornalismo, nunca fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
Mas há uma curiosidade: a pessoa que me contactou deu-me apenas duas horas para decidir. “Estaremos à espera da sua resposta daqui a duas horas”. Claro que não acredito que foi o Luther que tinha orientado o seu pessoal a me colocar naquela situação. Entendi aquela postura como conspiração.
No fundo era só vontade do Luther e não do seu pessoal, afinal estar nessas coisas já foi motivo para ser “milionário”. Percebi logo o filme. Claro que nunca disse nada disso ao Luther, telefonei-lhe para agradecer pelo convite e disse-lhe mais algumas coisas. Hoje, reflectindo sobre aquele convite, consigo perceber que o Luther estava a preparar o seu staff para futuros embates, diante dos quais também temos legitimidade de questionar se de facto era bem aconselhado pelo staff que o rodeava.
É evidente que muitos naquela altura queriam estar na minha pele. Aliás, ser dessa revista e estar ligado a um órgão como o SOL, publicação que ‘atravessa a lusofonia’, seria um bom motivo para ser ‘filho’ daqueles generais bwé endinheirados.
Numa de “jornalista delinquente”, era só aceitar, passar a entrevista-los para o SOL e ao mesmo tempo para a revista da JOTA, haveria ‘chuva de casas’, no kilamba e condomínios, bem metido num “animal” daqueles, tipo um “Lamborghini”, afinal dinheiro é o que nunca lhes tinha faltado.
O convite do Luther acontece algum tempo depois de me ter concedido uma grande entrevista, durante a qual, respondendo à questão se para um jovem conseguir emprego era preciso ter o cartão de militante: “Ó Félix, se assim fosse, a JMPLA não teria desempregados”. Um dia partilho aqui a entrevista.
Apesar de declinar o convite, a minha relação foi sempre sadia com o Luther. Num encontro que “nos demos” no Huambo, numa actividade do Miss Huambo, ao me ver, perguntou o que estava lá a fazer, ao que respondi que estava no meu “bastião”. Com um sorriso radiante, Luther disse que “você é cabeça dura”.
Mas a minha relação com o Luther já me trouxe muitos problemas na família. Uma vez deixei escapar umas conversas com ele, alguém viu uma troca de mensagens e percebeu que éramos amigos. A conversa espalhou-se pela família. Há mesmo quem nunca tenha me perdoado por não intcerceder diante do Luther para lhe arranjar emprego. Outros ainda não me perdoam por não interceder para conseguir casa no Kilamba. Eu sempre reagi na maior nornalidade possível, mesmo quando só andava de táxi.
Mas o Luther continuou a sua viagem rumo à Cidade Alta, infelizmente interrompida agora por essa maldita “doença”. Quando foi nomeado a governador de Luanda, enviei-lhe a seguinte mensagem via watsap que espero estar bem guardado no meu telefone avariado: “A única coisa que te peço é que penses no povo”. E ele respondeu como sempre: “muito obrigado, meu irmão”.
Em 2019, o PCA da Media Rumo, Domingos Vunge, disse-me que o Luther gostava muito de mim e fazia questão de elogiar-me como pessoa e como profissional. O Luther fazia questão de me fazer sentir “estrela”.
Na maior parte das vezes que nos vimos, saudou-me como alguém muito próximo. Na inauguração de um dos cafés, em Talatona, fez questão de bater um papozito, apesar de ter uma agenda bastante preenchida. Isto normalmente desperta atenção dos demais, porque já estava lá enquanto governador de Luanda e responsável pelo corte da fita.
Mas há quem não o perdoe pelo facto de ter sido do MPLA, sobretudo alguns revús. Esses dizem que Luther compactuava com os males. Alguns até foram ao extremo: gostaram da sua partida. Não é o meu caso. Felizmente sempre que tive oportunidade, alertei-lhe para os excessos que estavam a ser cometidos. Tínhamos mais oportunidade de falar no Parlamento, casa bastante frequentada por mim enquanto jornalista e ele enquanto deputado.
Para mim, Luther era um militante extremamente disciplinado, pronto para as missões a si incumbidas, mas não que estivesse alheio aos excessos cometidos. Mas percebi, igualmente, que tinha feito uma boa leitura do seu partido e que é a disciplina que o levaria longe e bem ciente do que faria ao chegar lá. Por isso é que fiquei estupefacto quando foi exonerado. É que antes do Luther, nunca mais tinha visto um governador de Luanda tão preocupado em deixar um bom legado aos luandenses. O Luther foi o único governador de Luanda que me surpreendeu pela positiva.
Em pouco tempo tínhamos a escola Angalo e Cuba, no Cazenga, reabilitada, um pesadelo para os cazenguitas que parecia nunca mais terminar. É claro que também vale aqui a pressão exercida pelos moradores e associações – Tany Narciso que o diga-, mas o mérito vai para o Luther.
Tínhamos em pouco tempo um espaço para idosos e vulneráveis em Luanda, com maior dignidade, enfim, se acrescentarmos o pedido, ao PR, para a reabilitação da estrada do Calemba 2, ou até a retirada da famosa grua, estávamos diante de um distinto governador que estava a fazer esquecer vários mais velhos que por cá passaram. Aliás, mesmo no Uíge chegou a visitar zonas onde há mais de 40 anos que não passava um governador.
Luther era muito forte no combate político, dos pouquíssmos nos jovens do MPLA que reunia características para governador e político. Aqui nesta página, não me cansava de dizer que ele e o Mfuca Muzemba protagonizaram o melhor duelo de jovens políticos dos últimos 20 anos, ele pela JMPLA e o Mfuca pela JURA (UNITA). Com o Luther vivo, eu sei que teria alguém com quem contar para pelo menos transmitir as preocupações do povo. O Luther partiu ciente dos vários problemas do País, sentimento que encontra respaldo, por exemplo, na ausência de um relatório médico público.
Paz à sua alma!
Ps: fiz uma pausa nas férias faceboocanas para deixar estas linhas.
Félix Sambinja Abias | in Facebook